Vem e chora comigo

Não é o objetivo da terapia, porque terapia boa mesmo não tem objetivo, mas todo terapeuta tem isso como uma meta secreta: Fazer o paciente chorar.

Não é sadismo, porque o prazer não está na dor do paciente. É outro sentimento que a gente procura. O prazer de ver a pessoa chorar só acontece quando o choro vem do paciente ser ouvido tão bem ouvidinho se percebe num ponto novo, fresco, assustador, cheio de possibilidades.

A gente não chora só quando está triste. Às vezes o choro vem de olhar para uma parte nossa que estava esquecidinha, tão sem receber olhares que se emociona ao ser reencontrada.

É como encontrar um velho amigo que foi muito importante em algum momento difícil, e misturar a alegria de encontrar o amigo com a memória da parte difícil. Esse reencontro é lindo, e o sintoma do paciente ficar com os olhos cheios de lágrimas nos traz aquela sensação de "BINGO! Achei petróleo!".

(Nota: pela minha experiência, em geral não se trata de petróleo verdadeiro, é só o delineador da paciente borrando mesmo. Mas, pelo valor do barril, não custa nada extrair uma amostra e mandar analisar.)

Nem sempre o paciente chora pelo motivo que diz estar chorando


"Meu irmão morreu...", diz o paciente em uma sessão, impassível.

"Meu pai morreu", diz o paciente na sessão seguinte, ainda firme e cheio de convicções.

Sem pressa. Essa dor vem quando tiver que vir.

"Tirei quatro na prova de matemática", ele diz, meses depois, e chora sentido como se a prova de matemática fosse um tiro no peito.

Certamente dói como se fosse.

O choro também vem quando a tensão é grande demais e, como uma reserva prestes a irromper, precisa-se aliviar botando toda essa água pra fora.

O problema é que a gente também é uma represa cheia, com nossos próprios dramas e sensibilidades - já falei aqui, sob uma chuva de pedras, que todo bom terapeuta é uma pessoa meio ferrada - e o choro do paciente às vezes encontra um eco perfeito no nosso coração.

Separar os próprios conteúdos daqueles trazidos pelo paciente é um trabalho essencial para todo terapeuta - por isso a gente faz terapia também! - mas como separar a nossa humanidade da de quem está na nossa frente?

Ainda mais com essa bendita ironia do universo, que teima em sincronizar as crises dos pacientes com as nossas?

Termine um namoro pra ver: todos os seus pacientes vão vir com términos de namoro.

Brigue com sua mãe pra ver: vai aparecer alguém falando de uma briga com a mãe.

Jogue um mentos na Coca-Cola pra ver: não tem a ver com a clínica, é só uma experiência legal mesmo.

Mas fica a questão: Aparecem mais pacientes com problemas como o seu, ou é você que está vendo o seu problema nos pacientes?

Nessa hora, vale a pena pensar duas vezes antes de chorar.

Mas existe um choro de terapeuta que é lindo e muito digno


Ele aparece quando a dor do paciente toca naquele nosso grande calo primal, aquele sofrimento que fez a gente decidir virar terapeuta.

O choro que remete ao nosso maior sofrimento, aquele sentimento mais simples e singelo que nos acompanha há mais tempo.

Todo (bom) terapeuta tem um sofrimento desses.

É o choro que fundamenta nossa empatia. O que desce dos nossos olhos são lágrimas de carinho.

Pra mim, esse sentimento é o de gente que faz o possível pra ter um momento especial e singelo mesmo tendo muito pouco.

Meu pai, por exemplo, sempre fez o possível pra que - mesmo nos momentos de maior pobreza da família - a gente tivesse uma refeição bacana em família por semana, geralmente uma pizza.

Teve um dia, numa fase especialmente quebrada lá em casa, que ele apareceu em casa no sábado à noite com um pacote de Fandangos. O olhar meio tímido, meio de derrota, meio de "Me desculpem. Eu só pude trazer isso.".

Todos entendemos que a pizza não rolaria e concordamos, sem palavras, que aquele era um momento para estarmos juntos. Sentamos, toda a família reunida, e comemos Fandangos como se fosse um banquete.

E era. Era um banquete de amor.

(Eita cacete, tô chorando enquanto escrevo. Não falei que esses conteúdos são uma coisa poderosa?)

Agora, quando um paciente vem me contar uma experiência como essa, de carinhos apesar das dificuldades, ferrou.

Não é com qualquer coisa, mas eu choro mesmo.

"Estávamos com muito frio, minha mãe tirou a coberta da cama dela e colocou na minha. Eu vi ela vestindo várias blusas e deitando na cama descoberta. Só fui entender isso anos depois", diz o paciente, enquanto eu soluço alto.

E o que fazer?

"Desculpa, querido. É demais pra mim, mas me conta como é pra você."

E voltamos a focar na pessoa


O que não dá pra fazer, de jeito nenhum, é botar o nosso sofrimento na frente do de quem está confiando seu próprio sofrimento a nós.

Mas nós decidimos passar a vida cuidando dos outros porque, em algum momento, já sofremos muito. Foi aquilo que doeu que nos fez ter carinho e respeito pela dor do outro.

Recalcar esse sofrimento nos tornaria péssimos terapeutas, porque essa é a base da nossa empatia.

Agora, por favor, me alcança um lencinho que eu fiquei meio mexido depois de tudo isso e eu tô com uma sessão pra começar daqui a pouco...

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

Oops... Faça login para continuar lendo



Interações
Comentários 15 0