Minha sala, minha vida

Meu primeiro escritório foi a cozinha da casa da minha avó. Lá, desde que eu tinha idade suficiente pra ficar sentado, eu passava minhas manhãs batucando nas panelas dela, ou girando a manivela da máquina de fazer macarrão, ou só bagunçando as gavetas.

Mesmo antes de falar, foi ali que eu aprendi a escutar.

Escutava o chiado do rádio AM contando as notícias do dia e desejando bom dia às donas-de-casa, escutava a vizinha vindo perguntar se podia pegar abacate, escutava minha vó falando “mas que porcatchón!” toda vez que eu fazia bagunça.

Foi ali que escutei minhas tias planejarem seus casamentos e reclamarem de seus maridos. Foi ali que escutei meu avô contar do dia que quebrou o dedo do pé quando era criança. Foi ali que escutei o chiado do fogão a lenha assando o leitão a pururuca que minha avó fazia com tanto cuidado porque eu gostava do crocante.

Foi na casa da minha avó que aprendi a fazer carinho com o ouvido, e foi lá que eu aprendi o que é amor.

Lembro bem de quando quis montar meu primeiro consultório


Aluguei uma sala baratinha no centro da cidade - sem o menor planejamento, onde eu estava com a cabeça? - e só então me dei conta de que os meus pacientes precisavam pelo menos de um lugar pra sentar.

Eu tinha separado dinheiro para o aluguel, não para os móveis. Já falei que eu não tinha planejamento?

Por sorte, eu namorava com um menino que tinha uma loja de móveis e ele me presenteou com uma mesa de centro, duas cadeiras, um armário e uma estante bem bonitas.

Moral da história: Na falta de planejamento, transe com as pessoas certas.

Não, espera. Não sei se a moral é bem essa.

Não fosse a ajuda do meu então namorado, eu provavelmente juntaria três ou quatro pallets da rua pra sentar em cima.

E, honestamente, acho que isso teria funcionado em algum grau.

Mas foi só agora, anos de carreira depois, já atendendo em um lugar bem diferente, que eu fui repensar nos móveis na minha sala.

Agora que eu finalmente tenho a chance de escolher como é o lugar em que atendo, o que eu quero que esse lugar diga sobre mim? Como eu quero que meus pacientes se sintam quando entrarem na minha sala?

Não acredito que seja possível controlar tanto assim aquilo que o nosso ambiente vai dizer


Você pode preparar um ambiente todo zen e ainda assim morrer de ódio ao ter a sessão interrompida pelo carro do ovo passando na rua com o som no último volume.

Uma colega alugava minha sala por hora, para atender seu único paciente, e logo se empolgou.

Perguntou se podia comprar um divã para trazer para a minha sala. Deixei.

Ela me apareceu com uma poltrona nova e um divã de quatro mil reais.

Continuou com aquele mesmo paciente e comprou uma sala comercial no centro da cidade. Investimento pesado, mas isso era muito importante para ela, bastante perfeccionista e cuidadosa com o que oferecia.

Mandou fazer todos os móveis da sala nova sob medida, gastou uma nota preta para não atender num espaço aquém do ideal que ela planejara.

O que aconteceu?

Antes de entregar os móveis, o marceneiro teve um AVC. Não entregou móvel nenhum. Pra piorar, ela já tinha tirado o divã e a poltrona da minha sala e levado para o consultório dela. O que aconteceu?

Ela ficou ansiosa. Ficou triste. Ficou frustrada.

Se obrigou a atender com a sala vazia, sem móvel nenhum além do divã, da poltrona e do próprio ouvido.

O que aconteceu depois?

Ficou feliz. Descobriu que não precisava de muita coisa pra atender.

Enfim, depois da saída da minha colega e do divã dela,

Resolvi mexer na minha sala.


Driblei o zagueiro na minha carteira e goleei a loja de móveis.

Comprei uma mesa confortável pra fazer os meus atendimentos no Skype. Comprei um sofá bonitinho (que não passou pela porta e exigiu que eu chamasse um pedreiro pra desmontar o caixilho). Comprei uns quadros novos para a parede.

Mudei tudo de lugar. Coloquei um xale na poltrona e dispus na mesa uma garrafa térmica com chá e canequinhas de Duralex marrom.

A primeira sessão depois da mudança foi, por coincidência, com uma paciente fissurada em decoração.

“Gostei da mudança!”, disse ela, "Tive uma sensação muito boa quando entrei aqui."

“É mesmo? Que sensação você teve?”

“Sei lá, parece casa de vó.”

Que satisfação!

Como é prazeroso escutar a coisa certa, no lugar certo.

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

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