Terapia nos tempos de cólera

Não sei se vocês repararam ou se estão com a cabeça afundada num buraco na terra (recomendo), mas o Brasil está dividido.

De um lado, pessoas completamente descontroladas, cheias de uma fúria cega, defendendo uma causa política absurda. Do outro, as pessoas que concordam comigo.

Sem brincadeira: o clima é de tensão. Somos duzentos milhões de esfíncteres contraídos esperando pelo pior.

Absorvido por esse clima, alguém bate na porta do nosso consultório.

Como pode um psicólogo atender um paciente que sofre por conta desse clima político, sendo que ele mesmo participa dessa realidade?

Ou ainda: nesse jogo de queimada em que todos têm a convicção de estar do "lado certo", como dar uma escuta apropriada a uma pessoa que discorda - talvez violentamente - da sua visão política?

Não importa o lado que você tome na questão da posse de armas de fogo:

A maior arma de um psicólogo é estar desarmado.


É muito tentador escolher um lado político com que a gente se identifique e terceirizar para ele a solução de todos os problemas da humanidade, botando na conta do outro lado todos os males do mundo.

É mais fácil viver assim porque dar nome aos bois dá paz. Traz conforto. Nos dá um lugar de poder, ainda que nos sintamos do lado oprimido.

Mas toda angústia social esconde uma angústia íntima, e a doença social de ódio político esconde uma série de sofrimentos muito específicos de cada pessoa.

Por mais profundo que pareça, o sofrimento político ostensivo é um sofrimento de superfície. Ao terapeuta, cabe escavar e encontrar as raízes por debaixo dele.

Não que a crise política seja leviana, de maneira alguma. Compensa até olhar para os sintomas da sociedade como olhamos para os sintomas de um paciente. Eis o quadro:

- Sensação de perigo iminente

- Nervosismo e hipervigilância

- Dificuldade de concentração

- Repetição insistente de pensamentos

- Busca desesperada por soluções rápidas que tirem a angústia do caminho

Consulte seu manual diagnóstico e está lá: o Brasil tem um Transtorno de Ansiedade Generalizada!

Não é à toa que o consumo de Rivotril no país só rivalize com o de cafezinho.

E o que é uma pessoa com ansiedade senão uma pessoa com muita necessidade de controle e muito medo do que pode acontecer se esse controle escapar de sua mão?

Não há como tomar boas decisões em uma crise de ansiedade. Talvez aí more a maior responsabilidade dos psicólogos nesse cenário de hoje: primeiro, ouvir em cada pessoa a ansiedade que ali reside. Depois, deixar cada um tratar da crise política como achar melhor.

Tenho minhas dúvidas de que uma pessoa em extrema ansiedade política vá procurar - ou aderir - a um tratamento psicoterápico.

Aceitar uma análise aprofundada dos próprios sentimentos exige um pouco de dúvida e questionamento que, honestamente, alguém que deposita todas as suas esperanças em um único candidato, por exemplo, não vai apresentar.

Mas, no caso de isso acontecer, o caminho só pode ser um: o de ouvi-lo com carinho.

Nada acalma tanto uma ansiedade quanto a validação e uma escuta atenciosa.


Compartilhar da dor, da angústia e das fantasias que a cercam fazem qualquer pessoa se sentir mais em casa, mais confiante e... mais protegida.

E qual pessoa não deseja um pouco mais de segurança?

Os candidatos que o digam.

Quanto mais calmamente uma pessoa se permite mergulhar em si mesma, mais ela pode aceitar que ela tem um espectro político dentro de si.

Cada um de nós carrega dentro de si seus ativistas sociais e sua bancada da bala, seus movimentos dos sem terra e seus latifundiários. No fundo, todos desejamos alguém acima de nós que nos resgate.

Haja Olimpo pra tanto mito.

Com essa mitologia pessoal melhor compreendida, é possível entender o mundo que nos cerca com muito menos projeções e ingenuidades. Assim, vemos a vida como algo muito mais complexo e cheio de tons do que um mero conto de heróis e vilões sem nuances.

Com a ajuda de um carinho terapêutico, aceitamos nossas fraquezas, nossas inseguranças e... até o nosso próximo.

Mesmo que ele vote naquele filho da mãe que eu não vou dizer o nome.

Preencha com o seu filho da mãe de preferência.

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

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