Psicólogos e safadões

Primeira noite de inverno.

Eu sou uma pessoa que quer ser chique, e gente chique toma vinho. Chamei duas colegas, o crush e decidi ir para uma rua descolada aqui da cidade, um bom lugar para tomar vinho e botar fotos disso no Instagram.

Por rua descolada, eu quero dizer "rua em que os lugares cobram um preço de puteiro para você tomar sua bebida em pé na rua".

Mas tudo bem, se para ser chique eu preciso pagar o preço de beber vinho passando frio em pé na rua, eu pago com gosto.

Noite divertida, o papo fluiu maravilhosamente. Uma garrafa. Duas garrafas. Eu já nem sentia mais frio.

Uma moça elegante se aproximou do meu grupo:

"Com licença, posso entregar esses CDs de divulgação do show do Wesley Safadão que estamos produzindo?"

Claro que pode. Eu precisava de uns porta-copos pra minha sala mesmo, e o CD seria muito bem aproveitado pra isso.

Peguei as cópias do CD do Safadão de todos os que estavam ali comigo. Nada muito elegante, mas tudo bem.

Existe um motivo pra eu querer ser chique. Eu, no fundo do meu coração, sou um maloqueiro caipira que se empolga muito fácil com as coisas. É a minha natureza. Meus amigos não me chamam de Saci Loiro à toa.

Um pouco mais de vinho na cabeça, hora de ir embora. E aí, meus amigos, eu já não estava mais nem um pouco chique.

Eu tropeçava, eu cantava, eu gritava:

"VAI SAFADÃO!"


Enquanto chacoalhava os CDs como um porta-bandeira.

"VAMOS APOSTAR UMA CORRIDA!", propus ao meu grupo.

Meu grupo não quis, mas eu aprendi nas aulas de Gestalt a não depender dos outros para fazer o que eu quero e eu saí correndo.

Uma multidão na rua e o Saci Loiro correndo entre as pessoas, uma pilha de CDs do Wesley Safadão na mão.

O acidente era inevitável.

Tropecei numa pessoa. Um homem. Derrubei o sujeito no chão e não dei nem moral.

"Desculpa, moço! Culpa do Safadão!"

Olhei bem pra pessoa que eu tinha derrubado e vi ali um sorriso familiar.

"Oi, Flávio!"

Puta merda. Era um paciente.


"Oi!", eu respondi sorrindo amarelo.

Pensei em algo a mais que eu pudesse dizer para continuar o assunto, mas não consegui pensar em nada.

Um segundo de silêncio. Olhei bem no fundo dos olhos do meu paciente e, sem titubear, saí correndo de novo.

Quanto constrangimento. Dura vida de saci.

Mesmo se você não for um profissional incapaz de se comportar como um ser humano decente - como eu - deve passar pela maior dificuldade de ser psicoterapeuta: continuar sendo gente.

É muito fácil ser um exemplo de equilíbrio e congruência dentro do consultório, mas fora das paredes sagradas da sala de atendimento a gente continua tendo uma rotina constrangedoramente humana.

Na sessão seguinte, me obriguei a enfrentar a realidade


Comecei a sessão muito compenetrado:

"Nossa, Fulano, me desculpe pelo constrangimento no sábado. É super constrangedor encontrar o paciente justo quando a gente está bêbado!"

A resposta dele?

"Ah, de boa! Eu também tava bem loucão."

E emendou com a história do que aconteceu naquele dia.

Eu, narcisista, dei com a cara na parede. Claro que ele nem estava prestando tanta atenção assim em mim.

A gente atrasa sessão porque tava com dor de barriga, e o paciente precisa usar o banheiro logo depois.

A gente fica com cisco no olho bem durante o atendimento e fica ali chorando enquanto o paciente conta uma história feliz da sua vida.

A gente briga com o namorado e cruza com o cliente bem na hora em que está andando pela rua com o olho inchado de lágrima.

A gente sempre vai ficar aquém daquele ideal de profissional que existia na nossa cabeça, mas tudo bem.

Esse profissional perfeito é um saco. Além do mais, a pessoa que nos procura está buscando auxílio para olhar para os problemas dela, não para os nossos.

A nossa perfeição importa muito menos do que a gente pensa.

Você, essa pessoa esquisita, inadequada e que mal sabe o que tá fazendo na vida, pode ser justamente o que o seu cliente precisa para aprender - pela via do exemplo - que também pode ser esquisito, inadequado, sem rumo e ainda assim feliz.

Vai, safadão!

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

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