Quando as linhas dão um nó

Freud era um gênio, né? Perls também, que homem genial. Lacan, Frankl, Rogers, como a psicologia tinha gente genial antigamente!

Parece que quem olhava o ser humano e identificava necessidades e possibilidades, e inventava abordagens, e tinha sacadas incríveis, e era brilhante!

E como ficou prático pra gente hoje em dia! A gente só precisa estudar o que esses gênios todos já fizeram e copiar o passo-a-passo. Pra quê pensar agora, se eles já pensaram tudo?

Criatividade é coisa arriscada demais quando a gente já tem uma fórmula testada e aprovada pra seguir.

Qual a sua abordagem?


Nas rodas de psicologia, a pergunta de “Qual a sua abordagem” é quase como um “Mas e aí, baby, qual o seu signo?”: A resposta sempre vai ser rasa demais e a outra pessoa vai ter uma visão genérica e insuficiente de você.

E ai de você se falar que gosta de mais do que uma! Vão te chamar de indeciso e raso. Você vai ficar de fora das rodinhas, os psicodramatistas de um lado, os psicanalistas do outro, os behavioristas de canto, todos olhando torno para a sua indecisão.

Mas como pode ser suficiente uma linha teórica só para abarcar tudo o que você pensa sobre o ser humano, e também toda a sua visão terapêutica de como lidar com isso?

Eu comecei minha faculdade encantado com a psicanálise. Tive uma professora brilhante nos primeiros períodos que falava encantada - chegava a babar, literalmente - sobre o desenvolvimento da criança, as fases, o banho de linguagem, tudo tudo tudo era encantador na voz daquela mulher.

Logo pedi para ser paciente dela, desembolsando um dinheiro que eu não tinha para bancar todo aquele suposto saber que, a mulher sendo professora universitária, não podia ser tão suposto assim.

Fiz anos de análise com ela, entre o encantado e o frustrado. “Psicanálise é assim mesmo”, diziam, e eu prosseguia meu trajeto rumo a ser um minifreud polaco.

No final da faculdade, quando precisei escolher um supervisor clínico, a psicanálise era decisão tomada. Quando cheguei para assinalar a escolha, vi que um professor genial estava com nenhum supervisionando inscrito.

Achei aquilo absurdo. O CRP do homem era de número 0016, gente. Dezesseis! Um professor e tanto, um Jung dos tempos modernos, professor de mitologia, o cara. O problema era que… ele não era psicanalista. E agora, um professor bacana de psicanálise ou um professor de psicologia analítica que era uma lenda viva?

Alguma coisa em mim disse “Vai por aí, que o que você vai aprender na relação com outra pessoa vai ser maior do que a teoria.”

E eu fui.

Me apaixonei pela linha e agora sim! Estava decidido. Eu seria um psicólogo junguiano.

Foram anos de supervisão e estudo com aquele professor, mesmo depois da faculdade.

Mas a vida não aceita linhas de chegada, ela quer que você continue andando.


Troquei de terapeuta, e comecei a fazer terapia com um Loweniano maravilhoso.

Fui estudar um pouco pra entender melhor aquela abordagem e… me apaixonei também.

Precisei ganhar um dinheirinho extra e fiz monografias para um pessoal que estava se especializando em cognitivo-comportamental (não julguem, foi o jeito que eu encontrei de ser pago para estudar).

Eu tinha preconceito com a linha, mas fui entendendo as técnicas e a riqueza que elas traziam para simplificar alguns processos que de outra forma pareceriam complicados.

Fui fazer um curso que me pareceu interessante, me aprofundei na Psicologia Experiencial-Existencialista e chorei largado.

Como aquelas técnicas ajudaram meu trabalho no consultório, como tudo foi fazendo sentido com o que eu já tinha aprendido nas outras linhas!

O que eu sou hoje?


Um junguiano com uma longa história de amor e frustração com a psicanálise, utilizador de técnicas de bioenergética e TCC, com uma perspectiva humanista e métodos experienciais.

Um terapeuta voightiano, se me permite.

Claro que não dá pra fazer uma salada misturando quiabo com abacaxi. Coisas muito diferentes não podem andar juntas mesmo, e não vai dar pra querer estudar a transferência psicanaliticamente se você se aproxima do seu paciente como um humanista, por exemplo.

Mas salvo essas grandes oposições, por que não testar diferentes métodos e usar aquilo que você sente que funciona? Por que não usar uma técnica de psicodrama na sua sessão de gestalt-terapia?

Quem disse que você, meu colega, é menor do que Lacan ou Perls na capacidade de observar um ser humano e de ser criativo com como abordá-lo para gerar transformação?

Todos os grandes teóricos eram pessoas que se basearam no conhecimento que tinham à disposição e observaram abertamente o ser humano, e a partir disso criaram suas linhas de trabalho que com o tempo foram se transformando em abordagens.

É  uma ilusão acreditar que você vai escolher uma linha e suas angústias sobre como tratar um paciente vão automaticamente embora. Sempre vai ficar alguma insatisfação sobre alguma técnica, ou alguma paixão sobre um modo de ver o ser humano que você aprendeu lendo outra coisa, alguma vontade de fazer algo completamente novo e seu.

Em uma profissão que exige tanto da sensibilidade, escolher um ponto final e abrir mão da criatividade é assassinar lentamente tudo o que te faz um bom terapeuta.

Pra costurar bonito, a linha importa muito menos do que a habilidade do costureiro em conduzir a agulha.

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

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