Psicologia e Humor

Meu nome é Flávio Voight e eu sou o psicólogo responsável pela página da Oriente Psicólogos Associados no Facebook.

Quando eu e meus colegas resolvemos fazer uma página de psicologia, a gente fez o feijão com arroz. Uma frasezinha do Freud ali, uma foto de uma flor com uma frase de “Acredite em você” acolá…

Mas aquilo não nos representava. Nenhum de nós é particularmente fã de autoajuda, e honestamente, só as nossas mães curtiam o que a gente colocava ali.

Como não tinha muita resposta mesmo, resolvi assumir o conteúdo da página e chutar o balde. Além de psicólogo, eu sou escritor, já tinha escrito coisas de humor, faço teatro de improviso, já me meti a fazer stand up e no fim da faculdade eu até ganhei uma faixa da turma escrito “Nariz de Palhaço”. Fui tentando dar minha cara para a página da clínica.

Começamos a brincar mais. Postamos frases mais provocantes, coisas mais polêmicas, dar dicas de terapia com uma linguagem mais popular e, principalmente, a produzir nosso próprio conteúdo.

Quando a gente viu… Já tinha virado uma paródia do que uma página de psicologia normal deveria ser.

Surpreendentemente, a página explodiu.

Em menos de um ano desse tipo de publicações, chegamos a quase trezentas mil curtidas na página. A gente chega a atingir mais de dez milhões de pessoas por semana com publicações voltadas à psicologia. Tratar a saúde mental com bom humor nos faz atingir mais pessoas do que um comercial na Fátima Bernardes, por exemplo.

Todos os dias, a gente recebe dezenas de mensagens pedindo informações sobre psicologia e pedindo atendimentos.

Até aí, tudo bem.


Mas como tudo que faz sucesso tem uma onda contrária… Começamos a receber algumas pedradas. Gente falando que nosso conteúdo era horrível, que era uma vergonha publicar coisas assim na internet, que a gente devia perder nosso registro de psicólogos...

E quais são as pessoas que mais criticam a nossa atitude na página?

Psicólogos.

Enquanto isso, mensagens e mais mensagens chegavam na nossa caixa de entrada falando sobre como nossas publicações ajudam alguém deprimido a levantar da cama todos os dias.

Então deixa eu explicar nosso raciocínio por trás de “brincar” com a doença mental.

Primeiro, a ideia é nunca fazer piada da condição em si. Nós jamais vamos apontar o dedo na cara de alguém e falar “Olha, que trouxa! Ele tem comportamento suicida!”.

Provavelmente a gente vai fazer uma piada e dar a entender que, de vez em quando, esses pensamentos acontecem com a gente também.

E que tudo bem, o assunto é sério mas existe tratamento, você não é uma aberração por pensar em acabar com a sua vida.

É preciso ter coragem para rir na cara do sofrimento, mas isso ajuda muito. Rir é o melhor remédio, mas não para exatamente para o transtorno mental em si: ela é um remédio para a solidão que o sofrimento mental traz.

É como se você estivesse perdido numa cidade que você não conhece. Sozinho você pode se desesperar, acompanhado você tem alguém para pensar junto e tentar achar um caminho.

Isso é acolhimento.

O que eu não entendo é como um psicólogo pode ter mau humor.


Você não precisa se arreganhar pro paciente e tentar ser engraçado. Só precisa ser flexível o suficiente pra aceitar que a vida não é ordenada e organizada nos mínimos detalhes. Não é isso que uma terapia precisa fazer, trazer flexibilidade? Movimento?

O mecanismo por trás do riso é o da surpresa.

Alguma coisa cria tensão e essa tensão se resolve de um jeito inesperado. O alívio é tanto que o corpo lida com essa descarga com espasmos na respiração e a sensação de prazer.

Uma pessoa que desaprendeu a rir é uma forte candidata a um transtorno de pânico, por exemplo. Sem ter como liberar a tensão, a pessoa implode em insegurança. Um psicólogo pode ajudar o cliente com isso simplesmente sendo leve, não achando tudo o fim do mundo e apontando as levezas que podem existir num momento árido da vida de alguém.

Um psicólogo carrancudo é um péssimo profissional. Péssimo.

Nada ganha uma pessoa mais rápido do que entender e rir de uma piada que ela fez.

Entender o que faz uma pessoa rir é uma das maiores janelas que você pode ter para enxergar como essa pessoa funciona mentalmente.

Quem não entende o riso não sabe o que é empatia.

“Mas uma piada pode machucar uma pessoa!”


Pode, e é por isso que a gente precisa tomar cuidado.

Agora, não saber levar a vida com humor pode machucar ainda mais. Uma piada atravessada gera muito menos dor do que uma vida de contenção e recalque.

“Mas meu paciente foge do tema fazendo brincadeiras o tempo todo, e o assunto é sério!”

Eu já fui esse paciente. Seguinte: se a pessoa precisa brincar com algum assunto para conseguir falar a respeito, é porque essa é a única maneira que ela tem de entrar nessa questão espinhosa sem sentir dor. Nesse caso, ajuda bem mais soltar uma observação bem humorada que chame atenção para a responsabilidade da pessoa no assunto do que pedir para ela falar sério.

Dizer “Fale sério” para um paciente brincalhão é igual a dizer “Fique quieto, o seu jeito de lidar com esse sofrimento é errado. Eu sei mais do que você e esse não é o jeito certo”, e nenhum psicólogo decente gostaria de ter essa postura, certo?

Claro que existe um exagero de vez em quando.

Uma vez eu tinha uma paciente que cuidava de crianças, e tinha um apego especial por um garoto que ela cuidava que se chamava Tássio.

Tudo era o Tassiozinho. Tassiozinho tinha feito algo fofo, Tassiozinho tinha falado alguma coisa engraçada..

Um dia, a mãe do Tassiozinho abandonou ele e mudou de cidade.

Quando a paciente me contou isso, qual foi minha reação?

Perguntar o que ela sentia, abrir espaço para ver o que ela projetava naquela criança?

Não.

Minha primeira reação foi fazer um trocadilho.

“Pôxa, agora ele Tá Siozinho mesmo, né?”

A paciente caiu no choro.

Antes de eu terminar de falar eu já vi que tinha exagerado e que aquele não era um bom momento.

Ferrou. Errei.

(Só um parêntese para falar que obviamente esse não era o nome verdadeiro da criança e eu alterei o contexto um pouco. Mas a situação aconteceu sim, e meu maior orgulho do dia de hoje é ter conseguido pensar num nome que o trocadilho funcionasse do mesmo jeito. Passei mais tempo pensando nisso do que no resto do texto. Quem adivinhar o nome verdadeiro do menino e me mandar mensagem, ganha dez reais. Hipotéticos, porque eu não vou poder quebrar o sigilo. Desculpem.)

Uma piada mal colocada pode machucar?

Pode.

E o que a gente faz quando exagera?

Dá risada. Pede desculpa, mostra que errou. Tenta reparar o dano que fez. Se interessa verdadeiramente pelo ponto de vista do outro, para não repetir o erro.

Mas evitar se manifestar autenticamente por medo de machucar uma pessoa torna um psicólogo pior, e não melhor. Um bom psicólogo sabe olhar para a realidade e lidar com os desconfortos, não fugir deles ou maquiar a situação.

Claro que psicologia não é piada.


As pessoas precisam ser levadas a sério, a ciência da psicologia é coisa muito séria, as situações são sérias.

Mas a gente precisa lembrar que cuida de vidas - e uma boa vida é uma festa.

--

PS: Até onde eu sei, Tassiozinho hoje mora com parentes e está levando uma vida mais tranquila do que levava com a mãe. A paciente que me contou sua história continua em terapia e passa bem. Felizmente, todos sobreviveram ao trocadilho.

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

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