Psicanálise, essa vilã (ou: Minha birra com a psicanálise)

Essa história tem dois começos.
O primeiro começo é o começo da minha faculdade. Primeiro dia de aula, primeiro período, primeira turma. Entra na sala uma mulher amorenada com os cabelos tingidos de ruivo, penteados de modo a dar volume na medida certa para demonstrar imponência.
Suas roupas, uma combinação calculada entre algo executivo e uma explosão de cores. Nos pés, botas. No rosto, um sorriso que requereria quatro rostos para caber inteiro.
Simpática e dura, ela anuncia seu nome para a turma e coloca o nome da matéria no quadro. Psicologia do Desenvolvimento I. Já saiu explicando que a base daquilo tudo era a psicanálise, e que não tinha como dar aula daquela matéria sem passar pela história daquilo.
Aquela professora tinha nascido para usar a boca, no sorriso ou na palavra. Ela usava a boca até para gesticular.
"Vocês percebem a dimensão disso?", perguntava ela à turma depois de explicar algum ponto, apaixonada pelo que tinha acabado de dizer, a boca aberta escancarada, como se mostrando a alma boquiaberta pela sua paixão.
Mais tarde, na intimidade, alguns colegas me confessaram quantas vezes distraíram a mente nela num momento solitário de prazer noturno. "Imagina aquela mulher fazendo um boquete!", diziam eles, com os resquícios de hormônio da adolescência ainda à tona.
A mulher era um furacão. Livro publicado, mestrado interessante, coxas de fora, o próprio pôster de um falo.
"Você acha que uma pessoa que faz análise é uma pessoa melhor?", perguntei num dia de mais ousadia.
Ela respondeu sem titubear:
"Eu acho que uma pessoa que faz análise é uma pessoa mais tranquila, mais bem sucedida, mais rica e mais feliz."
Vendido.
Eu seria paciente dela, e a psicanálise seria meu futuro.
Eu queria aquilo pra mim.
Se eu começo falando da minha relação com a psicanálise falando dessa professora, foi porque, para mim, ela foi na época a personificação da psicanálise. Dessa relação saíram muitas leituras da área, muitos outros professores, cursos, palestras e eventos de psicanálise.
Fiz anos de análise com ela, e meus colegas morriam de inveja.
De início chorei um desconto considerável para conseguir pagar as sessões, mas os valores foram subindo com o tempo. "A análise precisa pesar no bolso da pessoa", diziam os entendidos, e eu concordava.
Custava toda a minha bolsa de estágio? Custava. Mas alguma coisa ali valeria a pena. Era um investimento que eu fazia no meu futuro, e daí que as minhas roupas estavam velhas e rasgadas?
Eu sofria, mas a psicanálise faria meu sofrimento valer a pena
Passei por muitas fases: de falar longamente sobre a infância, de discutir meus relacionamentos, meus traumas, de gozar longamente com meus aprendizados trazidos pelos atos-falhos que meu inconsciente me presenteava, de levantar do divã e falar "Olha pra minha cara!" para a analista, de sentir que eu não precisava de um gesto sequer dela para me sentir ouvido e acolhido.
Foi intenso.
Eu não sei se era tão profundo assim aos vinte anos de idade para aproveitar tão bem aquela estufa de pensamentos soltos, mas eu gostava bastante.
Cheguei ao fim da faculdade, meu estágio acabou, precisava começar uma carreira... Estava numa crise tremenda quando a minha terapeuta anunciou:
"Flávio, agora você é um profissional. Sua sessão passará a custar cento e oitenta reais."
Cacete. Se hoje esse valor é alto, na época era ainda mais - o salário mínimo devia ser uns seiscentos e pouco - e em dobro para um desempregado como eu. De tão inocente, escutei aquilo como uma aposta no meu futuro. Só podia querer dizer que ela acreditava que eu conseguiria pagar aquilo.
"Não tenho como agora", respondi, "mas se você me der dois meses, eu vou fazer o possível pagar esse preço."
Eu fiz o possível mesmo. Procurei emprego, trabalhei, fiz bico, contei bilhete de loteria, entreguei panfleto, trabalhei em shopping, mas não fui capaz.
Finalmente minha análise me cobrou um preço que eu não pude pagar.
Só eu sei como me senti frustrado quando larguei a análise, ainda que com a promessa de voltar assim que pudesse.
Eu estava com grandes dificuldades pessoais na época, e precisava muito de terapia. Tudo bem, eu tentaria me virar sem, mas eu me sentia um fracasso. Aquilo deveria ter me deixado mais forte, e eu me sentia mais desamparado que nunca, além de abandonado pela minha terapeuta.
Todos falavam que o processo era longo, difícil e libertador. Eu só conheci a parte do longo e difícil. E caro. E frustrante.
Na pretensa folha em branco da figura do analista, havia uma pessoa com demandas e visões que transpareciam durante a terapia. No silêncio que deveria me proporcionar um encontro comigo mesmo, um espaço para que meu narcisismo florescesse sem bloqueios. Nos momentos ocasionais de castração, às vezes a ferida pegava forte demais onde não havia preparo para tanto.
Doeu fundo perceber que não havia nada de mágico ali.
Uma pena, o marketing era lindo.
O segundo começo
O segundo começo dessa história foi dez anos depois, em uma sessão de terapia com outro terapeuta.
Eu me abria, um pouco relutante, em algumas questões profundas em que eu não tocava desde os meus tempos no divã. Trazia comigo, como também trazia naquela época, mil preconceitos e culpas.
Eram questões antigas, pesadas, daquelas que a gente até tem vergonha de levar pra terapia, mesmo sabendo que é nas questões sombrias que um processo terapêutico brilha mais.
Eu dava ao que eu dizia o tom de texto com introdução, desenvolvimento e conclusão, afinal eu já tinha trabalhado aquilo mil vezes na terapia anterior. Erro de amador. Até o passado de uma pessoa é um processo em andamento.
"E se, por um instante, você tentasse fingir que isso esses sentimentos todos são normais?"
Só quem faz terapia sabe o poder devastador de uma pergunta óbvia feita pelo terapeuta.
Naquele segundo, meu corpo relaxou. O insight trazido pela pergunta foi maravilhoso, como se uma onda de perdão lavasse meu corpo.
Foram, sei lá, setenta sessões de psicanálise demolidas em um segundo por um profissional que se permitiu me sugerir um exercício rápido baseado em um palpite que ele tinha sobre meu sentimento.
Mas a onda trazida pelo insight teve seu rebote e eu fiquei muito, muito triste, não pelas questões que eu tratava, mas pelo período em que eu gastei muito tempo e dinheiro em busca de uma resposta que sim, estava em mim mesmo, mas que precisava de uma pessoa um pouco mais invasiva no processo para ser acessada.
Me senti traído, me senti magoado, me senti solitário retroativamente pelos tempos no divã.
Foi como se eu tivesse desperdiçado o meu investimento e a minha esperança.
É cruel
Me parece cruel quando, sem didática alguma, se oferece a falta como resposta da falta.
Que tipo de profissional mesquinho e ruim atende uma pessoa em choque pela perda de um ente querido e apenas fica em silêncio, deixando que a tensão domine a sessão e permitindo que a pessoa saia ainda mais desorganizada que chegou, achando que não adiantou nada procurar ajuda?
Um profissional de psicologia que se diz terapeuta no mínimo precisa ter a dignidade de deixar claro, no primeiro momento do tratamento, qual é a sua linha teórica e como ela deve funcionar. Nós somos os responsáveis por ensinar como nosso trabalho funciona. A didática é uma pedra fundamental do acolhimento terapêutico.
Para os que estão bem informados a respeito do que é uma análise tradicional, ela pode ser um prato cheio. Para alguém já terapeutizado em outra linha, ou mais informado a respeito do seu mundo interior, a estufa de ecos da psicanálise pode ser muito bem vinda - mas ela precisa ser uma escolha consciente.
Não é a abordagem mais indicada para alguém em grande sofrimento ou com dificuldades relacionais intensas, e eu não vejo muito esforço dos profissionais da linha em divulgar isso se não pela via do "Realmente, análise não é pra quem quer, é pra quem pode", que pode moer ainda mais a autoestima de alguém fragilizado.
Me irrita muito o tom adotado por muita gente da área de que a psicanálise é algo muito brilhante e libertador, o grande caminho para uma vida plena, e que se você não é capaz de alcançá-la, é por ser uma pessoa pobre, seja de conteúdo ou de desejo.
Eu conheço bem esse discurso de "Se você não concorda, é porque não entende, e se não entende, é porque precisa se esforçar mais, ou você não tem valor". Eu vivi algo muito parecido na seita religiosa em que eu fui criado e da qual eu carreguei dores por anos. É um pensamento muito tóxico, e é incoerente quem conhece a fundo os círculos de psicanálise e diz que não percebe o tom messiânico que corre por ali.
Tenho plena noção do quanto as minhas queixas e mágoas sobre a psicanálise são visões anedóticas e muito pessoais, mas me irrita ouvir de quem tem carteirinha de torcedor para a linha terapêutica que os meus sofrimentos com aquilo tudo são devido a minha resistência, ou falta de insistência, ou falha em lidar com a minha própria angústia.
Fosse assim, outras linhas terapêuticas não teriam me proporcionado tamanha expansão, crescimento pessoal ou prazer.
Uma paixão, com suas distorções, lacunas e ilusões
Todo o propósito desse texto é dizer que não há linha terapêutica sem grandes falhas. Ainda assim, me parece curioso que dificilmente eu sentiria o mesmo medo de ser apedrejado ao escrever sobre as falhas da Gestalt, ou da Cognitivo-Comportamental, ou das psicoterapias corporais.
A psicanálise suscita grandes paixões e ódios porque se trata justamente disso: uma paixão, com suas distorções, lacunas e ilusões.
Comigo, foi meu primeiro amor. O fim dessa paixão deixou muito sofrimento e mágoas, mas também me preparou muito bem para os amores que vieram a seguir.
Sei que projetamos muito de nós mesmos nos nossos amores, e talvez esses sentimentos todos que eu tenho a respeito da área sejam por causa dessa sensação de amor mal resolvido. Pode ser. Não posso dizer que meu tempo de analisando não me fez bem. Aprendi muito lá, e ainda uso muita coisa dali no meu trabalho.
Pode ser que os problemas tenham mesmo sido culpa minha. Pode ser que eu não tenha sido bom o suficiente para a psicanálise. Mas pode ser também que ela não tenha sido um amor tão bom assim, e que o relacionamento tenha sido um pouquinho abusivo.
E não é querer falar mal de ex, mas eu estou bem mais feliz hoje.

Flávio Voight
@flaviovoight
Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.
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