O terapeuta do terapeuta

Dizia Lacan que o analista era - aos olhos do freguês, sob os véus da transferência - portador de um Suposto Saber sobre a pessoa que ele atendia.

A gente, que conhece o outro lado do divã, sabe que não sabe muito mais do que o paciente sobre aquilo que ele está passando.

O que não impede que, aos nossos olhos, os nossos terapeutas sejam super-homens.

Lembro claramente de quando inventei o meu atual terapeuta na minha cabeça.

Pouco mais de um ano depois de um final de terapia conturbado, encontrei minha antiga psicanalista na rua. Nos cumprimentamos com um abraço e nos tratamos com a gentileza de quem finge que aquela relação não foi profunda, intensa e repleta de transferências, amor e ódio.

"Você tá fazendo terapia?", ela perguntou.

"Tô."

Eu não estava. Até me surpreendi com a naturalidade da minha mentira.

"Resolvi mudar um pouco. Procurei uma linha diferente, corporal. E ele é homem, mais jovem. Quis mudar o perfil.", continuei.

"Ah, que bom! Espero que esteja sendo bom.", disse ela.

Que delícia guardar um segredo de alguém que já soube tudo que passava pela minha cabeça.

"Está sendo ótimo", continuei mentindo.

Assim, por acidente e mentira, as sementes da minha terapia seguinte eram plantadas na minha cabeça.

Atender psicólogos também é muito bom.


É divertido ver como alguém que, durante suas horas de trabalho, domina um setting terapêutico, se sente intimidado ao estar na outra cadeira do consultório.

É engraçado como eles também acham que a gente sabe tudo.

"Bom, com certeza você já viu isso, mas sabe naquele livro do Scherënber, quando ele comenta sobre o unicipacionamento cracoviótico do processo de seminomação?"

O paciente não me dá tempo de responder.

"Claro que sabe, né? Então, eu acho que é bem isso que acontece comigo."

"Como assim?", eu pergunto.

E aí sim, a pessoa explica o conceito de um jeito que eu entenda. Não sem antes emendar:

"Mas se eu entendi o conceito errado me explica, tá?"

Mal sabe ele que entender um conceito como psicólogo não ajuda em nada a entender o conceito como paciente.

Uma coisa é pensar a respeito de um processo, vivê-lo é outra bem diferente.

De qualquer forma, depois da sessão vou direto pro Google descobrir quem diabos é esse tal de Scherënber. Já topei com alguns autores legais desse jeito.

Duas semanas depois, encontrei uma ex-paciente minha, também psicóloga, numa queima de estoque de uma loja de roupas.

Papo vai, papo vem, ela me contou sobre a especialização em psicologia corporal que ela estava concluindo, que ia apresentar seu TCC em dupla com um psicólogo muito bom, que inclusive a lembrava de mim.

"É mesmo? Ele atende também?"

"Atende. Tá abrindo consultório agora. Ele é mais novo, sabe?"

Pronto. Era exatamente o terapeuta da minha mentira. Resolvi investir.

"Me passa o telefone dele?"

"Pra...?", disse ela.

"Eu tô procurando um terapeuta."

"Pra quem?"

"Pra mim, ué?"

"Mas ele é recém-formado!"

"Tudo bem!"

Ela achou estranho. Acho que ela ainda estava sob a impressão de que eu era muito cheio dos saberes.

A relação de um terapeuta com o próprio terapeuta é muito especial.


Enquanto pessoas sensíveis e cheias de traumas com a profissão de cuidar de pessoas sensíveis e cheias de traumas, sabemos o quanto a terapia é importante pra não enlouquecer de vez.

Mas nossa terapia tem um grau a mais de importância: quanto mais evoluímos no nosso próprio autoconhecimento, melhores seremos para os nossos pacientes, e para isso é importante que nosso terapeuta seja bom, e também tenha ido longe e profundo no seu próprio processo terapêutico.

Precisamos confiar nos nossos próprios cuidadores como nossos pacientes confiam em nós - e só então seremos capazes de entender como é difícil entregar os próprios sentimentos a alguém.

É um inception de terapia: um bom terapeuta depende de um bom terapeuta que depende de um bom terapeuta que, no fim das contas, dependia do Freud, que provavelmente dependia muito da própria mãe.

Acabou que o colega dela era sensacional. Estamos há alguns anos juntos e o fato do CRP dele ser mais recente que o meu não me incomoda em nada.

É o meu terceiro terapeuta na vida, e o processo tem sido muito transformador.

Eu acho que ele sabe tudo. Se é suposição minha ou não, tanto faz.

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

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