Nós, robôs

Não existiam muitas maneiras diferentes de ganhar uma carreira de respeito antigamente.

Se você não tinha a opção de fazer uma faculdade como Engenharia, Direito ou Medicina - a grande trinca de alguns anos atrás, substituída hoje pelos sonhos de ser Youtuber, Panicat ou Participante do Big Brother - você ainda tinha uma chance: estudar bastante, entrar num concurso público, trabalhar muito e, em algum momento, tornar-se gerente de banco.

Como eram poderosos os gerentes de banco!

Eram eles que decidiam quem ganhava empréstimo e quem continuava sem dinheiro, eram eles que tinham a cidade toda nas mãos em busca de seus favores.

Agora, você viu algum gerente de banco recentemente?

Ele é o cara com as maiores olheiras de toda a agência, tentando muito convencer um senhor de 65 anos a fazer um empréstimo com desconto na aposentadoria.

O que aconteceu?

Os bancos desenvolveram algoritmos muito mais confiáveis que o palpite de um gerente na hora de descobrir quem tem mais probabilidade de pagar um empréstimo, de qual investimento pode ser mais bem sucedido e de como maximizar os lucros de uma agência.

A tecnologia superou o homem e todo aquele poder que a figura do gerente de banco tinha ruiu.

Uma paciente que trabalha em universidade me falou que apenas dois cursos tem dado lucro em sua instituição nesses tempos de crise: Psicologia e Direito.

Quem diria, estamos em alta.

Nunca se falou tanto em saúde mental, nunca terapia foi tão pouco tabu e nunca fomos tão procurados. Os cursos de psicologia estão com as turmas lotadas.

Mas quem sempre foi minoria não se acostuma fácil com o sucesso: será que algo pode abalar nossa bonança?

Estamos seguros ou somos os próximos gerentes de banco?


Esses dias, um teste fez sucesso na Internet. Ele indicaria a probabilidade da sua profissão ser substituída por robôs.

Algumas áreas, como manutenções técnicas e execução de cálculos, corriam grande risco de ser superadas por computadores, cada vez mais bem programados e utilizando de inteligência artificial.

Na psicologia, o índice era menor: temos 1,6% de chance de ser substituídos por um instrumento tecnológico.

Ainda assim, todo risco é um risco. Será que em algum momento nós também seremos superados pelo tempo?

"Mas nunca que um robô será capaz de substituir um terapeuta!"

Tenho minhas dúvidas. Algum tempo atrás, uma faculdade americana lançou um bot treinado para responder como um terapeuta humanista. O leitor que me perdoe, mas eu não consegui por nenhum diabo do mundo encontrar o link. Talvez tenha saído do ar.

O robô - que era bem simplezinho, sem inteligência artificial, isto é, sem capacidade de aprender com as respostas dos usuários - pegava algumas palavras chave do discurso e respondia com perguntas.

"Quero me matar!", dizia o usuário.

"Que sensações você tem a respeito de querer se matar?", respondia o robô.

"Sinto um aperto no peito e a sensação de que ninguém gosta de mim"

"Como é para você se sentir como se ninguém gostasse de você?"

Cheguei a bater uns longos papos com o robô - obviamente limitado - mas que me surpreenderam com como a nossa técnica pode ser facilmente simulada. Em um momento de crise, antes um robô como aquele do que não ter ninguém para conversar.

No RH também podemos sofrer alguma concorrência. Já há softwares capazes de observar o discurso de um candidato a alguma vaga, analisá-lo em comparação com outros funcionários da empresa e definir com alguma exatidão se ele é o candidato com maiores chances de sucesso após ser contratado.

Psicologia é conhecimento, percepção e empatia, e pode ter certeza que alguns robôs são capazes de ter todas essas coisas com muito mais exatidão do que nós.

O que nos diferencia de uma inteligência artificial é justamente o que nos diferencia uns dos outros como profissionais: as nossas características únicas, as nossas falhas e as nossas maneiras particulares de se relacionar uns com os outros.

Assim como bonecas infláveis não vão acabar com a prostituição (que exemplo horrível!), nada vai ser capaz de substituir o afeto e o calor que um profissional realmente humano pode oferecer.

Mas preste atenção: um profissional realmente humano!


Cada vez mais a nossa experiência é essencial para nos diferenciar no mercado. Você tem alguma vivência que não é qualquer pessoa que tem?

Teve especialização vivencial em relacionamento bichado?

Tem uma pré-graduação profunda em família ferrada?

Fez uma pesquisa in loco sobre o que é ser de uma minoria?

Então para quê manter isso de fora da sua técnica? Por que ser tão privado e tão distante, por trás de uma prancheta e um jaleco?

Por que não criar uma abordagem só sua para algum problema que você conhece bem? Por que não compartilhar, de forma sutil e didática, sua experiência com o seu paciente?

Por que não assumir todas as suas falhas e defeitos claramente, de modo que o seu paciente pense "Caramba, esse doidão aí é que nem eu!"?

Se você não souber claramente quem você é e o que oferece como pessoa para o seu paciente, não precisa se preocupar nem um pouco com ele vir a ser atendido por um robô.

Ele já está sendo.

Autor Flávio Voight

Flávio Voight

@flaviovoight

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do ser humano - e para ser um também.

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