A Psicologia Jurídica Não Existe

Opa! Começar um texto sobre psicologia jurídica com um título desse, vamos combinar, é dar um tiro no pé, né não? Mas, Lacan disse que "a mulher não existe" e sobreviveu após essa afirmação, então, tenho fé que, por aqui, dará tudo certo também!

Pensar a psicologia jurídica na prática, requererá de nós, muito mais que o entendimento de que estamos diante de uma área de atuação da psicologia: estamos falando de uma das dimensões que nos estrutura enquanto sujeitos no mundo, o que, transcende (e muito!) o pensamento reducionista de apenas mais uma área de atuação.

Mas ok, você não precisa entender agora meu ponto de vista, nas próximas linhas desenrolarei esse nó e, tenho certeza, ele se tornará laço para que você se permita (re)significar tudo que aprendeu sobre psicologia jurídica até aqui.

Aceita o meu convite?

O motivo não é outro senão a lei


Uma das primeiras lições que aprendemos dentro de nosso caminho acadêmico na psicologia (essa, independente de abordagem teórica, todo mundo aprendeu!), é que a nossa constituição, enquanto sujeitos, é explicada pelo modelo biopsicossocial (mas lembre-se que, antes dele, vivemos o modelo biossocial, quando não reconhecíamos componentes subjetivos na constituição de um sujeito).

Faço essa ressalva para lembrar que sim, os modelos podem ser superados quando não são capazes de explicar determinado fenômeno e, sim, está tudo bem!). A gente super enche o peito e fala assim: "considerar as dimensões biopsicossociais", fazendo semblante de suposto saber, como se isso explicasse um bocado de coisa!

E sim, claro, explica muito!

Mas já se deram conta que esse social que se faz referência traz em si um sistema de regras e normas que nos estruturam e nos fazem funcionar enquanto sujeitos no mundo?

Vou me explicar: quantas vezes você já se pegou com muita vontade de fazer algo e só não fez por conta do sistema normativo em que vivemos?

Vamos lá, um exemplo: suponha que eu chegue para você e te conte, hipoteticamente, a minha história.

Te narre que vim de um lar abusivo e violento, que minha mãe era agredida, física e psicologicamente, por um homem por mais de 20 anos; que testemunhei a minha vida e a dela sendo destruída a cada novo amanhecer. E que fomos expostas às mais diferentes formas de maus tratos, eu e ela, ao longo de muito tempo; que, para salvar a mim e minha mãe, já enfraquecida por todas as violências experimentadas ao longo de tantos anos, decidi fazer algo mais definitivo e planejei matar o agressor.

Veja bem, por que eu não o faço, por que não passo para o ato?

Biologicamente estou pronta para isso, estou na fase adulta e tenho condição física de agir; psicologicamente, idem, já que tudo que eu vivi me fazem acreditar que algo precisa ser feito por legitima defesa e isso está muito claro para mim; e socialmente, não duvido que, em havendo oportunidade, linchassem esse homem por mim e comigo, o que daria uma legitimidade social a meu desejo de passar para o ato.

Mas, por que mesmo não o faço?

O motivo não é outro senão a Lei: eu não quero ser presa.

Te trago riqueza de detalhes dessa história para que, empaticamente, se envolva e entenda as minhas motivações e meu desejo, enquanto personagem dessa narrativa. Mas percebam também o quanto temos em nós, regras legais que nos estruturam e nos fazem funcionar nesse mundo mas que são, muitas vezes, colocadas de lado na formação em psicologia.

Enquanto falarmos de sujeito, e me parece ser esse o objeto de estudo da psicologia, precisaremos sim falar de (muitas!) leis.

A letra legal estará sempre aí, fazendo a baliza


Repare, se a leitura chegou até aqui, acredito que, ou minhas letras tem feito algum sentido para você ou está procurando mais indícios de que não estou mentalmente equilibrada (ah, sobre essa segunda hipótese, não tenho nenhuma dúvida, e ainda bem!).

Quando afirmo que a psicologia jurídica não existe, é entendendo a dimensão estruturante que os nossos Códigos e Constituição tem, em maior ou menor ordem, em estarmos no mundo e o quanto isso ainda é marginal dentro da psicologia, que resume a prática às pericias e assistências técnicas psicológicas.

Nas mais diferentes áreas de atuação da psicologia, somos surpreendidos com demandas legais e o entendimento disso (sim, de Lei!), não tenho dúvida, faria e fará diferença em nossa prática profissional em psicologia.

É bonito nosso discurso sobre, por exemplo, transfusão de sangue e as testemunhas de Jeová. Alguns de nós tem alguns (no plural!) argumentos para um bom debate.

Mas o quanto a lei pode (ou deve) interferir na vida de uma pessoa?

Porque não adianta dizer que não vai interferir...

Alguns transgredirão (a lei legal!) e outros não, mas a letra legal estará sempre aí, fazendo a baliza.

E poderia trazer aqui uma infinidade de outros temas, do cotidiano de pessoas, como aborto, uso de psicoativos ilegais (os legais não precisamos falar aqui!), questões de famílias, relações erotizadas, de trabalho, e tantos outros assuntos os quais tem o atravessamento legal como limitante (ou não!) de nossas escolhas e caminhos no mundo.

Como nós, psicologia, estamos tão distantes da Lei, achando que temos um objeto científico oposto e não complementar às ciências jurídicas?

Aqui na Bahia, infelizmente, a disciplina de psicologia jurídica nos cursos de psicologia, quando existe, é optativa nos currículos e, muitas vezes, é ministrada por profissionais que não tem prática com o assunto e estão ali para compor carga horária. Ratifico, quando existe!

Lembra quando, lá em cima, comentei sobre modelos de entendimento estruturantes do sujeito, que está vigente o modelo biopsicossocial, substituto do biossocial?

Pois bem, hoje já se fala da necessidade de levar em consideração a espiritualidade enquanto dimensão estruturante do sujeito, em separado da perspectiva social (sim, nem sempre a experiência da espiritualidade de alguém é contemplada pelo social, mas essa não deve ser descartada), o que já nos convidaria a refletir sobre o modelo atual e possibilidades de substituição, incluindo ai uma quarta dimensão estruturante.

Mas, ainda não é onde quero chegar: pensar num sistema de justiça, composto por Constituição e Códigos, também como uma dimensão estruturante do sujeito, para mim, faz muito sentido!

E, mais do que nunca, contemplando a atualidade política brasileira, não me traz desconforto algum afirmar que as nossas leis nem sempre refletem o social (ou não estaríamos assistindo legalmente um monte de coisas socialmente reprováveis. Aguardemos as próximas eleições (in?)diretas e as cenas dos próximos capítulos), logo não poderíamos entender a justiça, enquanto instituição, como subgrupo do social.

Nós precisamos falar sobre isso!


Ok! Eu sei, eu sei, para um primeiro encontro, eu exagerei, né? Mas sim, nós precisamos pensar, falar sobre isso!

Me causa desconforto perceber o quão deficiente são nossas práticas, nas mais diferentes áreas da psicologia, por não termos conhecimento sobre o quanto a "lei legal" estrutura-nos e nos faz funcionar nesse mundão!

Resumir a psicologia jurídica a uma área de atuação em "interface com o sistema de justiça" é subestimar o poder que a lei legal tem de constituir o sujeito desde lá atrás, em seu processo de socialização, ainda na primeira infância.

Alguns ensinamentos que eu e  você recebemos foram por estar escrito em lei! Inevitavelmente, somos produtos também disso (sim, volto a afirmar, vamos encontrar muito do legal no social, mas não consigo conceber essas duas instancias como equivalentes!) E antes de escolher pensar que minhas palavras não fazem nenhum sentido para você, se oportunize refletir sobre o que te digo!

Marginalizar essa dimensão estruturante da perspectiva científica da psicologia é, para mim, uma escolha equivocada que fazemos (sim, a responsabilidade é pessoal e intransferível!) para atuarmos enquanto profissionais da psicologia.

Mas, confesso que nossa imaturidade científica e profissional legalizada em território brasileiro (de 1962 pra cá não é lá muito tempo para uma ciência firmar as pernas) me consola e me renova o fôlego para continuar arriscando letras e distribuindo convites de reflexão! Nós precisamos falar sobre isso!

Autor Kallila Barbosa

Kallila Barbosa

@kallilabarbosa

Kallila Barbosa é Psicóloga, especialista em Psicologia Jurídica e mestre em Educação e Contemporaneidade. Completamente apaixonada pela área, fundou a Associação Baiana de Psicologia Jurídica - PSIJUR e fomenta com intensidade discussões e espaços sobre essa temática, de abrangência interdisciplinar.

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