Privação e delinquência

“Não parece exagero dizer que as manifestações de privação e delinquência em sociedade constituem uma ameaça tão grande quanto a bomba nuclear. De fato, certamente existe uma conexão entre os dois tipos de ameaça, uma vez que, assim como aumenta o elemento antissocial na sociedade, também o potencial destrutivo no seio da sociedade atinge níveis mais autos de perigo.” Clare Winnicott  – Privação e Delinquência

O que impressiona nessa citação que referencia as experiências vividas por Donald W. Winnicott e equipe, durante a evacuação das crianças de Londres em plena Segunda Guerra Mundial, é a incrível proximidade com os dias atuais. Até parece que foi escrita após uma reportagem de um Jornal de alguma emissora de TV.

É claro, podemos pensar que esse fenômeno é atemporal. Certamente. Mas o que assusta é constatar que temos uma tendência inata a destruição, bem como a nos desenvolvermos.

Sustos a parte, Freud diria que Eros e Tânato estão trabalhando juntos. Enquanto um cuida da pulsão sexual, instigando a busca pela vida; o outro ampara a morte, a destruição daquilo que é vivo.

Winnicott colocaria um colorido todo especial a essa questão, dizendo que a morte ou a destruição se relacionam a um processo criativo do ser humano, pois morrer também implica em renascer, reconstruir, reinventar. Eu acrescento que é fazer tudo isso consigo e contribuir, à sua maneira e conforme as suas condições, com o desenvolvimento individual e humano da sociedade.

A grande questão é: como manter um ambiente suficientemente humano para viver, se a destruição também é um caminho certo?

Esse ambiente deve ser capaz de fornecer a quem precisa, toda a segurança possível. Mas, o fato de alguém precisar de cuidados, não quer dizer que não fará o possível para destruir todas as possibilidades de ajuda que encontrar.

E olha, é perfeitamente compreensível. Uma vez que referências boas são escassas e um grande vazio existencial toma conta de alguém, por que aceitar ajuda, se até mesmo isso representará uma ameaça, não é?

Imagine a gama de emoções, de esforços psíquicos, físicos, mentais, espirituais que precisarão ser feitos para sair de um estado de total estresse, para um de plenitude. E se algo der errado? E se me a pessoa for abandonada outra vez, quando estiver chegando lá?

Sejam tais questionamentos conscientes ou não, são pertinentes a um estado de mudança. Um estado que mesmo visando a plenitude, ainda assim, levará uma pessoa a passar pela destruição para renascer (ou nascer), longe das privações que a aprisionam, e sem estados delinquentes que a afastam do mundo.

O que é privação? O que é delinquência?


Bom, embora toda a problematização tenha sido feita acima e servido para “aquecer” a leitura desse artigo, é importante não deixar as coisas soltas. Por isso, vou conceituar os termos “privação” e “delinquência”, bem como explicar o contexto em que esses termos foram de grande evidência.

A privação é a ausência de amor, quando a criança “perde o chão”.

Aqui, entenda o amor em suas mais conhecidas variações: segurança, acolhimento, socorro, cuidado, carinho, atenção. Quando uma criança de até 5 anos de idade é emocionalmente privada dos cuidados de sua mãe, o desenvolvimento de sua personalidade é seriamente comprometido.

A delinquência é o comportamento antissocial, quando uma criança é “contra o ambiente”.

E uma criança não reage contra o ambiente por nada. Ela faz isso por que, de alguma maneira, esse ambiente foi ruim para ela. Resumindo, a delinquência está ligada a uma perda específica; uma perda que se dá após a separação do ambiente (EU do NÃO EU). A perda é abrupta, repentina e duradoura.

Importante!

O termo “duradoura” se deve ao fato do ambiente não reconhecer alguma situação como perda. No entanto, para a criança, isso é e continuará sendo... “para sempre”. Por exemplo: o nascimento de um irmão mais novo. Para a mãe (ambiente), isso é uma benção, uma alegria enorme. Mas, para o filho que até então era único, essa situação representará uma perda irreparável do seu espaço e de sua relação única com a mãe.

Deste modo, como confiar no ambiente novamente, já que a continuidade da criança dentro dele foi abalada? Volta-se a privação e por aí, o ciclo se repete.

A Segunda Guerra Mundial amplia a teoria do amadurecimento emocional.

Sim, um evento de catástrofes incalculáveis colocou Winnicott à frente de um trabalho de grande importância. Como dito acima, ele comandou a evacuação das crianças de Londres, conciliando não apenas a recolocação delas em abrigos temporários, como a troca de experiências entre as equipes de assistência social e os pais temporários dos lares.

Contudo, no momento em que existe uma urgência, como bombas caindo sobre a cidade, não se pensa muito nas alternativas “A, B e C”. As coisas precisam acontecer e pronto. É complicado encontrar soluções quando se está envolvido por completo.

Por isso, os professores da época diziam que as crianças não iriam se ressentir com a evacuação. Mas Winnicott alertou que se isso fosse feito de qualquer jeito, nas próximas décadas as políticas públicas de educação iriam se voltar para a delinquência.

Antes de uma situação de Guerra, era importante compreender o que uma criança entendia sobre ela. Dependendo da qualidade do lar onde esse pequeno habitava, tiros e bombas seriam os menores dos problemas.

De fato, para muitas crianças, a Guerra foi uma verdadeira salvação. Ao serem alocadas em novos lares, tiveram contato com pessoas suficientes as suas necessidades. Mas o efeito contrário também ocorria. Algumas crianças, menores de 5 anos, ao regressarem as suas casas originais não mais reconheciam os seus pais, pois haviam desenvolvido um grande afeto pelos pais temporários.

Acho que até aqui, deu para compreender o verdadeiro “abacaxi” que Winnicott tinha nas mãos, não é?

Por isso, antes de seguirmos, faço aqui uma recomendação que ampliará os seus conhecimentos. Recomendo a leitura do livro Privação e Delinquência.

O medo como uma condição existencial


Eu mencionei que era necessário compreender o que significava a Guerra para uma criança. Mas entenda que a “guerra” pode acontecer a qualquer momento, dentro e fora dela.

E nessa guerra, o medo se faz presente.

O medo é uma emoção importante na vida de qualquer pessoa. É por meio dessa sensação que nos colocamos em estados de alerta diante de prováveis perigos, por exemplo. Nesse caso, falo aqui dos efeitos do medo, seja para fazer uma pessoa seguir com a vida ou paralisar-se.

Ainda em sua vida primitiva, o bebê irá se relacionar com certas privações. Até então, normais para leva-la ao estágio de dependência. De acordo com o grau dessas privações, um bebê poderá crescer e tornar-se um adulto imobilizado pelo medo.

O medo é caracterizado pela falta de confiança no ambiente, pela ausência de uma rotina que sustente a criança e que mostre a ela que, naquele local, com aquela mãe ou cuidador responsável, ela terá a sua existência preservada e nada poderá ser roubado dela.

E as reações antissociais, diante das privações e de uma vida imobilizada, leva o bebê-criança-adulto a defender-se do medo sentido do ambiente (do mundo).

As versões mais “modernas” dessas imobilizações recebem o nome de transtorno de ansiedade, sendo o pânico um dos mais comuns.

Normal e patológico


Para Winnicott, os distúrbios de caráter eram manifestações de tendências antissocial. Assim, a enurese, encoprese, agressividade, compulsão, surgem como sintomas da perda e da falta de confiança no ambiente.

Pegando esse último sintoma, para uma pessoa, seja qual for a idade dela, é preciso se fixar em algo para se sentir-se seguro, mesmo que esse objeto leve a estagnação. Não importa se a vida não andar, o importante é que nada mude para deixa-la segura.

É possível até ter consciência de que determinada situação não é desejada, mas é melhor ficar com “isso” do que correr riscos ou não ter nada.

O roubo também se enquadra nesse comportamento delinquente (antissocial). Trata-se de uma aquisição para aplacar a perda. Dessa forma, uma criança, por exemplo, não rouba. Ela só está recuperando aquilo que é dela, pois está dissociada da realidade.

Certa vez, no consultório, notei que alguns soldadinhos haviam sumido. Isso já acontecia há um certo tempo, mas só quando o número foi significativo eu percebi. Eu tinha as minhas suspeitas, e elas foram confirmadas quando eu “vi” aquele garotinho enfiando, as pressas, um deles no bolso.

Eu não podia repreende-lo, pois, de alguma forma, aquilo era importante para ele. É comum que crianças levem “parte da sessão” para casa. Eu apenas afirmei que ele não precisava guardar o soldado no bolso com tanta afobação. Disse:

- “Mesmo que você não esteja me dizendo nada, eu já sabia que você estava levando o soldadinho para casa.”

Ele argumentou:

- “É que ele é meu”.

- “É sim – disse eu. E se é importante para você, que ele fique na sua casa o tempo que quiser, até você ter a segurança para traze-lo de volta.”

Não era o bonequinho que seria trazido de volta, mas ele, aquela criança. Conhecendo a sua vida, a sua privação emocional era evidente até em suas expressões faciais e as suas reações corporais: tristeza, raiva, medo.

Em um certo momento ele começou a trocar: levava um brinquedo, mas trazia outro. Aos poucos ela não precisava mais disso, pois reencontrou em sua mãe a confiança perdida após a chegada de sua irmã mais nova.

Casos assim evoluem facilmente para uma patologia severa (como se patológico já não fosse severo rsrsrs). Depois disso, a luta é para voltar à normalidade da situação. A coisa complica, pois, se pensarmos bem, o normal de uma criança que sempre viveu no caos... é o próprio caos.

Por isso eu repito o que escrevi no início desse artigo: “...o fato de alguém precisar de cuidados, não quer dizer que não fará o possível para destruir todas as possibilidades de ajuda que encontrar.”

O ambiente é importante. Nós sabemos disso. Mas precisamos considerar que uma criança, um bebê, um adulto ou um adolescente, vivam de forma dissociada e por isso, acreditam que roubar, agredir, matar, esconder-se. Enfim, creem que isso é justamente o que mundo pode oferecer.

É por isso que levanto a bandeira de que não são as crianças a precisarem de psicoterapia, mas os pais.

Assim, os riscos de privações e comportamentos antissociais terão menos chances de acontecer. E uma família, independentemente da história que a cerca, poderá ser saudável ao viver a vida em suas próprias condições de plenitude.

Recapitulando


Neste artigo, você:

  • Conheceu os conceitos de privação e delinquência.
  • Compreendeu o contexto em que tais conceitos foram importantes para a ampliação da teoria do amadurecimento emocional de Winnicott.
  • Aferiu que o medo se relaciona a um comportamento antissocial por representar uma condição de defesa contra o ambiente.
  • Distinguiu que a normalidade e a patologia variam da experiência de vida de cada pessoa, e que mesmo um estado patológico é considerado “normal” na vida de alguém.

Deixe os seus comentários aqui. Compartilhe as suas experiências de vida.

Vida saudável e prospera para você.

Autor Rodrigo Moreira

Rodrigo Moreira

@rodrigomoreira1009

Rodrigo Moreira é psicólogo e especialista em gestão de pessoas. Como consultor, tem sólida carreira desenvolvida em grandes consultorias de educação corporativa. É escritor, tendo lançado seu primeiro livro Ele não é isso pela Editora Arwen; e futuro psicanalista winnicottiano. Em seu “lado B”, é nerd, fã de Senhor dos Anéis e Star Wars. Tem, até hoje, seu quartel general, veículos e action figures dos G.I. Joe (Comandos em Ação).

Oops... Faça login para continuar lendo



Interações
Comentários 2 0