O Bom, o Mau e o Self

“Gosto muito de fazer análise e sempre aguardo com expectativa o final de cada uma delas. A análise pela análise não tem sentido para mim. Faço análise porque é disso que o paciente precisa e aceita. Se o paciente não precisa de análise, faço, então outra coisa. Na análise, pergunta-se o quanto é permitido fazer. Por contraste, em minha clínica, o lema é: quão pouco precisa ser feito

– D.W. Winnicott – The Maturational Processes and the Facilitating Enviromment.

Considero esse trecho importante, porque nele é possível PROVAR que não há necessidade de PROVAR NADA.

Para você, psicóloga ou psicólogo (eu me incluo nisso), uma das grandes frustrações acontece quando o paciente encerra, por conta própria, o contrato terapêutico. Inúmeras fantasias passam pela cabeça. Vão desde acreditar na própria incompetência profissional, até uma suposta “mentira” do paciente, que inventa um motivo qualquer para interromper o processo.

O quão pouco precisa ser feito diante disso?

Se um paciente mente para você, pode crer que ele teve um bom motivo para isso. Acredite nele, e não na mentira.

Além disso, não se trata do tempo do contrato, dos resultados entregues rapidamente ou uma “cura”, mas o quanto esse caminho natural, de relações significativas e aprendizado seguiu, rompendo defesas e possibilitando uma vida plena.

Embora as palavras descritas acima sejam poéticas, experiências ruins e contrárias às boas expectativas também fazem parte do processo de amadurecimento.

Como lidar com elas?

Olha, o que tenho para dizer é que o BOM não existe sem o MAU, o VITORIOSO não existe sem a DERROTADO e por aí vai. Logo, o VERDADEIRO não existe sem o FALSO. Levanto a hipótese de que a partir de um certo vazio de sentido na vida, existe sim um caminho para evoluir.

Assim, se o FALSO incomoda, é chegada a hora de descobrir o VERDADEIRO. Mesmo que para isso as coisas precisem ser... “picadas” e não correspondam as expectativas iniciais das psicos e dos psicos, não é mesmo?

A jornada da vida


Com o passar do tempo e de inúmeras experiências vividas, sejam elas construídas por meio de relações verdadeiras ou falsas, a decisão de ouvir, falar, sentir, agir, depende inteiramente das motivações dos pacientes, das pessoas de modo geral.

Quando se acredita ter o poder para influenciar ou decidir por algo ou alguém, o psicólogo e muitos profissionais da área da saúde podem cair em uma terrível armadilha, pois, além dos conflitos inconscientes que estão além do controle de qualquer pessoa – inclusive de quem os vive –, alguns não percebem que mesmo fazendo pouco, já fizeram muito.

O quão pouco precisa ser feito para auxiliar uma pessoa a construir o verdadeiro self, e a ter uma vida mais integrada... plena?

A experiência que define o verdadeiro self é a aceitação incondicional das necessidades do bebê pela mãe suficientemente boa – ou como mencionado no artigo “Curtindo o ambiente adoidado”, de quem possa assumir essa função.

O contrário disso: um ambiente hostil, ausência de amparo, insegurança, falha no holding, gera no bebê a necessidade de se defender a todo momento para sobreviver.

Sim, o falso self é uma defesa.

O self não tem cor, não tem cheiro, não tem tamanho, não é estático. É simbólico, é um estado de saúde que pode proporcionar às pessoas viverem suas vidas de maneira plena, integrada, saudável.

Agora... se as experiências verdadeiras e falsas são subjetivas e a influência do psicólogo sobre a vida das pessoas vai só até a “página 2”, como ajudá-las a terem uma vida mais saudável?

Vivendo plenamente


Faça o possível, mesmo que isso seja “pouco” – caramba, tô ficando repetitivo ????

Você já parou para pensar que há pessoas que não sabem se relacionar com um gesto muito significativo: o carinho? Sem referência do que é isso ou aquilo, não percebem o valor de um gesto carinhoso para o outro e para si.

Sabem apenas que a verdade é somente aquele mundo que a agride e que a faz repelir qualquer tentativa de aproximação – o “Mito da Caverna”, de Platão, pode ajudar você a refletir bastante sobre isso – ou doam-se em excesso a ponto de esquecerem de si mesmas.

Seja lá qual for o motivo de uma pessoa precisar ressignificar o afeto e por isso, procurar por você, acredite:

  • Só agora ela pode dar conta de começar a descobrir o que é significativo para ela, o que não quer dizer que ela irá até o fim (se é que existe um);
  • Mesmo incomodada, talvez ela não tenha a mínima ideia do que está acontecendo;
  • Ela precisa de experiências verdadeiras de acolhimento.

E mesmo que o contato com você seja breve, é bem possível que só precise disso para ressignificar alguma coisa na vida dela.

O caminho até o verdadeiro self é uma experiência que permite idas e vindas – me senti o próprio Mestre dos Magos agora rsrsrsrs. Isso se caracteriza por ir e voltar nas próprias decisões, defender-se do mundo e abrir-se para ele, a partir das devidas motivações: casamento, emprego, escola, psicoterapia.

É comum um paciente retornar à terapia depois de muito tempo. Isso mostra que o vínculo está lá, que ele leva, dentro de si, algum significado sobre o que você representa para ele.

Ele foi, elaborou até onde conseguiu e voltou.

Carinho


Vou chamá-la de “Carinho”.

Ela, uma mulher de 40 e poucos anos, casada, sem filhos e recém-formada em Enfermagem.  Em um dado momento de sua vida, nada mais fazia sentido. A carreira estava em declínio antes mesmo de começar, pois estava difícil de arrumar trabalho.

Quanto ao casamento, há tempos havia terminado. O que restava era a árdua tarefa de buscar carinho, situação não correspondida por seu marido. Em sua ânsia de encontrar acolhimento, decidiu ela mesmo cuidar:

“Vou cuidar, assim me sinto cuidada”. Não à toa, tornou-se enfermeira.

Investigando mais à fundo, a solidão, medo e ansiedade foram experiências negativas que ela encontrou na infância. Sua mãe não apenas negligenciava os cuidados a ela, mas aos irmãos. Atribuía a ela a função de “mãe”, dando-lhe a responsabilidade de cuidar da casa e de seus próprios filhos.

Cuidar fora o lema da vida de “Carinho”; contudo, cuidou tanto dos outros, foi tão ativa nessa causa que não aprendeu a ser passiva também, a confiar para RECEBER, ao invés de DOAR-SE sempre.

Como permitir ser cuidada, se nunca houve referência do que seria esse comportamento dedicado?

E mais, ao “baixar a guarda”, talvez as coisas pudessem se tornar hostis, tal qual o casamento. Nesse caso, é melhor cuidar a ser cuidada mesmo!

“Carinho” foi e voltou algumas vezes. Ela frequentava as sessões com assiduidade num mês, no outro faltava uma ou duas vezes. Teve um momento em que interrompeu formalmente a terapia, e voltou 2 anos depois.

Os motivos financeiros sempre foram os primeiros argumentos. E ainda hoje eu concordo: são importantes.

Mas é só isso?

Embora a afirmação seja de que o amadurecimento emocional primitivo é algo natural, é importante pensar que isso deverá ser alcançado também. Em outras palavras, não basta ficar parado e esperar que uma “luz divina” abra-se sobre si, não é mesmo?

E assim foi com “Carinho”. Parte de seu processo terapêutico ocorreu por meio de experiências fragmentadas. Suas idas e vindas mostravam o quanto ela estava disposta, nesse modelo, a alcançar um estado pleno em sua vida, ressignificar coisas, construir o seu verdadeiro self.

Afinal, como confiar no psicólogo e em tudo que ele representa, não é mesmo? É melhor que seja aos poucos.

Embora muito longe do que eu idealizava ser correto (ingenuidade a minha), todo esse tempo com ela foi repleto de sentido e propósito para sua vida – e talvez ainda esteja sendo assim, quem sabe?!

Era como se “Carinho” precisasse a todo momento desintegrar-se para poder se integrar; morrer para renascer; destruir para construir. Sem perceber, ela lidava diretamente com a sua capacidade criativa, algo belo em toda natureza humana.

A natureza humana


Essa última parte faz referência direta ao livro “Natureza Humana”; no entanto, não estou reduzindo essa fantástica obra apenas a essa passagem. Não, não estou! Isso só integra algo muito mais vasto e diria eu... indecifrável, que é a nossa própria essência.

Você já ouviu a música “Hard Sun”, do filme “Into The Wild”?

Aí vai um trecho dela:

When I walk beside her | Quando eu caminho ao lado dela

I am the better man | Eu sou um homem melhor

When I look to leave her | Quando eu tento deixá-la

I always stagger back again | Eu sempre volto tropeçando

Essa canção ajuda a compreender sobre a essência de todos nós, seres humanos. Quanto mais deixada de lado ou simplesmente não vivida, mais tropeços são dados. Veja, acidentes fazem parte da jornada, mas se isso afasta as pessoas de uma vida saudável, então alguma coisa está errada.

O que acha?

Viver a vida plenamente é possível à medida que o self se constrói. Isso implica em pessoas capazes de cuidar de si mesmas ao tornarem-se mais independentes, pois, inconscientemente ou não, trazem consigo as vivências dos cuidados do ambiente – mãe.

Se o ambiente cuida, é possível sentir-se protegido. Assim, não há um “temor mortal” ao encarar a vida.

Baseado nesse argumento, a integração entre psique, mente e soma – falarei melhor sobre isso no vídeo “Desintegrado, mas ainda vivo” –, ocorrerá de maneira confiável; porém, não garantirá que os dilemas da vida terão fim, como já dito acima.

Se “em time que está ganhando não se mexe”, é natural que qualquer pessoa tente se defender de uma possível ameaça do ambiente que irá desintegrá-la, tirando dela um estado de plenitude em sua vida.

Digo isso, pois as falhas ambientais continuarão existindo:

  • Se há uma tolerância, muito bem, a vida segue.
  • Se não há, é necessário se defender.
  • Se há defesas que impossibilite viver plenamente, a saúde está debilitada... a vida perde o sentido.

Por outro lado, o quão pouco precisa ser feito pelas pessoas diante de um caminho natural de desenvolvimento, em que as “soluções” não existem sem os problemas, em que o verdadeiro não existe sem o falso?

Bom, paro por aqui! Vou deixar essa discussão para o vídeo.

Mas, antes de dar “tchau”, bora recapitular o que foi visto até agora. Também convido você a compartilhar suas experiências profissionais, nessa jornada de construção do verdadeiro self, rumo a uma vida saudável.

Recapitulando


Neste artigo, você:

  • Entendeu que o falso self é uma defesa, e que a construção do verdadeiro self leva a integração, a uma vida plena e saudável.
  • Compreendeu que em muitos casos, pouco precisa ser feito pelo seu paciente, pois as decisões e motivações pertencem a ele.
  • Identificou que, por mais controverso e frustrante tenha sido o contrato terapêutico, para seu paciente “esse pouco” pode ter sido muito importante.
  • Conferiu que mesmo o desenvolvimento humano sendo inato, cabe a cada pessoa alcançá-lo também.
  • Observou que mesmo em uma vida integrada, as defesas se manifestam em relação a uma ameaça de desintegração.

Um abração!

Autor Rodrigo Moreira

Rodrigo Moreira

@rodrigomoreira1009

Rodrigo Moreira é psicólogo e especialista em gestão de pessoas. Como consultor, tem sólida carreira desenvolvida em grandes consultorias de educação corporativa. É escritor, tendo lançado seu primeiro livro Ele não é isso pela Editora Arwen; e futuro psicanalista winnicottiano. Em seu “lado B”, é nerd, fã de Senhor dos Anéis e Star Wars. Tem, até hoje, seu quartel general, veículos e action figures dos G.I. Joe (Comandos em Ação).

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