Muito além das manchas, entenda o RORSCHACH

O teste das manchas de tinta denominado Rorschach, em homenagem ao seu autor, trás muita curiosidade não só na comunidade de Psicologia como na sociedade em geral.

O Rorschach, por ser um teste profundo, demanda um estudo amplo e trás uma parte visual bem peculiar. Já esteve presente em filmes, séries, charges e contextos em que a temática era referenciada ao trabalho dos Psicólogos e o uso de testes de forma séria ou bem humorada.

Na verdade, 90% das vezes que vi a referência ao teste foi em forma de crítica à abstração do trabalho da Psicologia.

Mas, o que a maioria das pessoas não sabem e não procuraram saber é que a construção do Rorschach demandou um estudo profundo, anos de trabalho e há uma teoria por trás dele que o faz ser pouco entendido. E talvez por isto o teste tenha se tornado um alvo fácil para críticas.

Como tudo começou


O Rorschach foi oficialmente criado em 9121 por Hermann Rorschach. Mas, antes de falarmos desta pessoa que batizou o nome do teste temos que dizer quais foram as origens dele para a construção do teste.

A ideia embrionária de uma percepção da personalidade através de manchas de tinta foi Justinus Kerner, um médico alemão que descobriu por acaso como as manchas de tintas poderiam assumir diversas formas e significados.

Kerner a partir desta idéia teve uma fixação pelas manchas de tintas e suas formas.

Ele não chegou a relacionar as formas com as personalidades, como seria feito mais tarde pelo próprio Rorschach, mas ele se fascinou com as formas e significados de uma maneira geral. Chegou inclusive a publicar uma obra “A vidente de Prevorst” voltada para o ocultismo e parapsicologia no qual relacionava as manchas para além do entendimento dos sentidos.

Inclusive Jung, ao saber do estudo de Kerner, em uma conferência sobre fenômenos espíritas, deu a entender que as manchas vinham do contato com o mundo sobrenatural e a mesa em que era posicionada. Mas o fato é que, nesta fixação com manchas de tintas, em que Kerner aplicava em várias situações, inclusive em cartas e manuscritos, crianças brincavam com este trabalho e há indícios de que o Rorschach (a pessoa que viria a criar o teste) estava entre elas.

Não sabemos se é verdade ou lenda psicológica!

De qualquer maneira, Rorschach ao ter contato com estas manchas não se interessou pelas formas que elas apresentavam, mas diferente de outras pessoas e inclusive o próprio Kerner, ele se interessou pela reação das pessoas ao ver as manchas.

E este olhar que foi o diferencial.

Antes que vocês se animem, eu devo contar também que o Rorschach, antes de criar o teste, trabalhou em outras teorias e grupos que o ajudaram a construir o teste das manchas original. Hermann Rorschach, inicialmente teve dúvidas em seguir a carreira artística ou médica e optou pela segunda. Já na universidade encontrou o que foi chamado de Revolução Psiquiátrica, no qual as idéias e teorias de Freud, depois de 10 anos na geladeira, tinham voltado com força total.

Teorias que Rorschach tinha um grande interesse, mas não concordava com tudo.

Na Rússia, em meados de 1911, com Konrad Gehring como mestre, ele se tornou colaborador do laboratório de aplicação e estudo de manchas de tintas formadas em folhas dobradas. Ele, junto com o mestre, discutia se havia diferença entre os alunos mais e menos desenvolvidos e suas fantasias ao verem as manchas de tintas.

Calma, gente! Ainda não foi desta vez que ele desenvolveu o teste!

Ele acabou por se juntar ao grupo psicanalítico e deixar este experimento de lado. Em 1913 conheceu algumas seitas religiosas suíças que chamaram sua atenção, principalmente porque em 1919 foi chamado a assumir a vice-presidência de um novo grupo psicanalítico que surgia de seu amigo Emil Oberholzer.

Enfim, em 1917, apesar de estar certo que iria escrever sobre as seitas religiosas que estudava, ele percorreu um novo caminho quando soube que Szymons Hens estava trabalhando empolgado com as manchas de tintas.

Rorschach lembrou-se de seus experimentos e tinha as ideias mais claras. Ele ficou inspirado não pelas descobertas de Hens, mas pelos questionamentos não respondidos na teoria deste. Como, por exemplo, por que cada pessoa reage de forma diferente às manchas de tinta e se sua análise seria uma ferramenta para diagnóstico.

Agora sim ele se animou com a ideia!

Rorschach tinha um conhecimento muito profundo não só na teoria psiquiátrica e psicanalítica, como também arte, etnografia, história das religiões e da literatura russa. Conhecimentos estes que o auxiliaram e muito na construção do teste.

Lembram que ele também queria fazer artes? Então!

O próprio Rorschach disse que sua inspiração para criação do teste veio de um sonho que aconteceu bem antes, em 1904, mas que teve fundamento em toda sua teoria. No dia deste sonho ele tinha aberto um cérebro ao meio e sonhou com esta situação de forma a sentir corporalmente o próprio cérebro sendo cortado.

Ele então percebeu, dentre várias características, que o ser humano tem mais imagens em sua mente que ele precisa ou experimenta em seu dia a dia e que haveria um caminho direto para a sensação por fenômenos sincinéticos nos quais as pessoas são fixadas e que estas são re-vivenciadas como impressão ótica.

Não entendeu nada!? Vou te explicar!

Ele percebeu, a grosso modo, que as imagens que se formam em nosso cérebro (e que muitas vezes são tantas que nem percebemos que estão ali) conseguem nos trazer sensações. Ou seja, imagens estão relacionadas a sensações reais.

E assim, ele procurou na construção do teste esta relação entre imagens, sensações e suas interpretações e análises.

Se você está pensando que é bem complexo, eu concordo com você, e olha que há ainda muito mais por trás disto!

Aplicação e correção


Agora que falamos sobre a sua origem, vamos falar da sua prática.

Não é simples aplicar o Rorschach, ele tem uma duração longa e é necessário ter muita atenção por parte do aplicador porque além de uma aplicação que demanda um grande tempo, sua correção também é detalhada e minuciosa. Isto porque TUDO que é dito, não dito, feito e não feito pelo examinando é importante.

E o profissional deve estar atento inclusive para situações em que “fogem da normalidade” que são respostas banais no qual é necessário que o profissional interfira e questione sobre.

Em seu processo de aplicação é necessário realizar Entrevista, Aplicação do Desenho da Figura Humana (DFH) e por fim a aplicação do Rorschach propriamente dito.

Na aplicação do teste Rorschach temos 4 etapas:

  • Questões sobre os cartões
  • Inquérito
  • Folha de localização
  • Escolha dos cartões que mais e menos gosta

Para a aplicação é necessário também um material bem preparado com os cartões de aplicação, lápis de cor, lápis 4ª, cronometro, folha de localização, folha de observação e folha de inquérito.

Aplicação do Rorschach é quase um evento! E você deve estar se perguntando o que há de tão complexo assim para demandar tanta energia.

Bom, quando Hermann Rorschach criou o teste ele o fez de forma bem minuciosa de forma que não haja um significado somente para a interpretação da forma mostrada como um todo, mas de cada pedaço separado também.

Isto é, ele construiu o total de 10 cartões com imagens que são espelhadas. Iniciou com a construção de 5 monocromáticos em preto e branco. Depois ele construiu mais 2 com a cor vermelha em conjunto e, por fim, 3 cartões coloridos.

Infelizmente não podemos colocar as imagens aqui. É proibido mostrar as imagens dos cartões do Rorschach porque como lidamos com as emoções, reações e discurso do examinando ao visualizar a imagem, se ela pudesse ser vinculada livremente tiraria certa validade do teste.

Eu sei o que está pensando: que há essa vinculação de várias maneiras em filmes, séries e etc. Infelizmente esta proibição nem sempre é respeitada e nem sempre há uma fiscalização para coibir estas ações. Mas não é porque os outros fazem errado que vamos fazer também, não é mesmo?!

Até porque é um teste muito interessante e com uma análise muito profunda para ser “queimado” assim tão facilmente. Mas, já te digo que você encontra estas imagens facilmente na internet. Infelizmente.

Voltando...

O teste Rorschach foi construído para permitir uma análise da imagem completa de cada cartão, mas também desta imagem de forma fragmentada. Sendo que, cada pequeno pedaço de cada imagem há também uma correção, interpretação e análise.

E lembrando que são vários detalhes de 10 cartões! Entendeu a complexidade?

Além disso, na aplicação é necessária uma observação também do tempo de latência (que é o comando tempo entre o do examinador e a resposta do examinando), comportamentos e reações diversas por parte do examinando, tempo total de realização do teste e outras características muito além das imagens dos cartões.

Acho que agora você já entendeu a dificuldade!

Mas, só para deixar claro que é difícil sim, mas não é impossível! Aliás, é até bem prazeroso aplicar a corrigir, mas demanda tempo e disponibilidade.

Custo-benefício


Aqui é o momento de eu ser ácida e te contar os prós e contras do teste Rorschach.

Até aqui, com este panorama do teste, você já deve ter percebido a complexidade que este teste de personalidade possui. E ele é realmente uma ferramenta que pode auxiliar e muito em diversas demandas. Apenas sua análise profunda e a captação de informações do examinando já seriam prós suficientes para você investir agora nesta ferramenta.

Mas, como nem tudo são flores, há também os contras.

Se você já leu os conteúdos que eu apresento aqui na Academia do Psicólogo você sabe que eu sou contra a utilização de materiais “piratas”. E aqui não seria diferente, principalmente porque neste caso a ferramenta é visual. Um cartão original confeccionado com materiais de alta qualidade tem um diferencial significativo em comparação com os materiais piratas.

E trabalhar com um material que não corresponda a este nível, pode inclusive atrapalhar e alterar a percepção e reação do examinando.

Porém, até a última vez que eu chequei, o preço destes materiais era caros comparados a outros testes (uma média de mil reais). Muito distante da infeliz realidade que muitos profissionais de Psicologia vivem profissionalmente.

E não é caro somente por causa do preço que ele está a venda, mas por causa do valor que ele perdeu conforme o tempo.

O fato, por exemplo, de ser um teste que já foi vinculado em diversas mídias de forma errada e que sabemos que isto pode ter alteração no resultado no teste diminui seu valor social.

Lembro-me quando fui submetida ao Rorschach e houve um cartão em que a profissão responsável perguntou “o que você vê aqui?”. Até aí tudo bem, ela falou direitinho e de uma forma bem tranqüila. Porém, quando eu vi o cartão me lembrei imediatamente de uma cena de uma série no qual este mesmo cartão era mostrado para o personagem principal que estava em terapia e ele respondeu que era uma vagina.

Pronto! Eu lembrei, comecei a rir porque é uma série de humor, lembrei das cenas seguintes e respondi que eu via uma vagina. Porque depois de já terem colocado em minha mente esta representação, foi a primeira imagem que eu consegui ver.

E claro que isto de alguma maneira deve ter alterado algum resultado!

Então, essa falta de fiscalização, quebra de sigilo e banalização do teste ajudou com que este se desvalorizasse. Outro ponto de desvalorização é o tempo que é gasto em sua aplicação e correção.

E tempo é algo raro hoje em dia!

A nossa configuração social hoje é ligada a escassez do tempo. E por isto foi necessário nossa adaptação de diferentes formas, como atendimentos quinzenais ou com o formato online, para que nossa profissão caminhasse junto à realidade dos clientes.

Por isso, eu questiono se os clientes teriam tempo para uma aplicação bem feita e se os profissionais teriam tempo para uma correção e análise. E, como “tempo é dinheiro”, penso também que isto elevaria muito o custo da utilização desta ferramenta, o que a tornaria ainda mais difícil de ser usada.

Enfim...


Você deve estar se questionando, ou me questionando, por que eu trouxe o conhecimento de uma ferramenta que há tanta complexidade e pontos a se pensar.

Justamente porque acredito que devemos conhecer e refletir sobre ela!

O Rorschach é uma ferramenta muito importante, é ela que, de uma forma errada, mas de alguma forma se tornou a vitrine da nossa profissão. Não sei se esta vitrine é legal, sei que não é da maneira ideal, mas a verdade é muitas pessoas passaram a conhecer a psicologia através dela.

Além do mais, é um teste que merece atenção e conhecimento e mais que isto, merece que nós trabalhemos em conjunto para que sua utilização se torne popular no meio psicológico.

É uma ferramenta com alto nível de potencialidade e o conhecimento dela traria mais força à nossa profissão. Eu gostaria muito que seu uso se tornasse viável de todas as formas e eu acredito que isto é possível.

Espero que este conhecimento tenha te aberto os olhos, a mente e sua percepção para o Rorschach e tenha desmistificado um pouco sobre este teste.

Autor Tássia Garcia

Tássia Garcia

@tassiagarcia

Eu sou Tássia Garcia, psicóloga por formação e empreendedora por vocação. Aprendi estudando, errando e praticando que ser Psicóloga é muito mais que eu aprendi na graduação. Atualmente utilizo meus conhecimentos em avaliação psicológica, inovação profissional e a experiência como coach e consultora para auxiliar outros profissionais a se posicionarem no mercado, construir estratégias de marketing e terem maior reconhecimento.

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