Curtindo o ambiente adoidado

“A tolerância é o que faz pessoas como EU conviverem com pessoas como VOCÊ. ”

Esta é uma das muitas frases marcantes, ditas por Ferris Bueller, no super clássico dos anos 80 “Curtindo a Vida Adoidado”.

E o que é a vida, senão um ambiente repleto de desafios. Dentre eles, a tolerância.

Quem é mais tolerante?

  1. A criança
  2. O adolescente
  3. A mãe e o pai
  4. A avó e o avô
  5. A tia e o tio
  6. A irmã e o irmão
  7. A mãe e o pai adotivos
  8. A professora e o professor
  9. A gestora e o gestor

TODOS, na medida em que as substituições e maturidade de cada pessoa forem favoráveis.

Se o ambiente é capaz de prover meios para que uma criança (pessoa) se desenvolva e amadureça, vale o desafio de ampliar essa concepção de “ambiente suficientemente bom” para além dos laços maternos.

O que você acha?

Um pai, uma tia, um lar adotivo ou até mesmo outra criança, podem ser tão continentes quanto a mãe?

Bora compreender melhor essa questão.

Além da maternidade


Veja, não estou dizendo que a mãe não tem um papel riquíssimo no desenvolvimento da criança. Mas, se o desenvolvimento é inato, e o ser humano se aprimora (amadurece) dia após dia, um ambiente tolerante, composto por representações simbólicas importantes, é fundamental para o amadurecimento.

Hum... também!

Digamos que há uma combinação importante aí.

Embora um ambiente adequado ou familiar seja importante no estágio de dependência absoluta, ele não é exatamente FUNDAMENTAL, só para esse momento. Afirmar isso reduziria a importância de experiências vividas em outras fases, após a criança adquirir a habilidade de relacionar-se com outras pessoas (relacionamento interpessoal).

Afinal, as pessoas crescem, e a vida adulta também conta.

Fica dica!

Winnicott não cuidada só de crianças, embora muitos psicólogos e outros profissionais da área da saúde, sempre associem suas contribuições ao público infantil. A criança sempre vem com um “pacote”: mãe, pai, escola. Por isso, recomendo o excelente livro “Conversando com os Pais ”.

Gradativamente o ambiente se tornará menos fundamental, e a criança utilizará situações triangulares para substituir uma relação familiar original:


Pensando na sua profissão, seu paciente ou coachee; gerente, assistente, estagiário, diretor (se você for psico das organizações), podem transferir para você esta relação original.

A grande maioria das pessoas não toma consciência disso. Talvez, elas nunca tenham pensado que uma mãe ou pai, por exemplo, podem ser representados por:

  • Mãe = avó, irmã, professora, gerente, namorada, amiga.
  • Pai = avô, irmão, professor, gerente, namorado, amigo.

Esses exemplos são curtos, pois preciso ser mais objetivo; no entanto, você poderá ampliar esse universo e suas relações para muitas situações.

Certa vez atendi uma mulher com sérios problemas relacionados a liderança masculina. Muitos empregos perdidos e conflitos conjugais depois, finalmente o insight:

O convívio junto a um pai opressor, na infância, influenciou seus comportamentos na vida adulta. Em especial, seus relacionamentos com homens em posições de liderança.

Fica a dica!

Você, psicólogo, se torna pai, mãe, tio, tia, chefe, brinquedo na relação transferencial com seu paciente.

O importante é: se uma relação familiar se rompe e um substituto adequado é encontrado, amadurecer e integrar-se cada vez mais ao verdadeiro self, será perfeitamente possível.

É claro, considero injusto para uma criança de 8 anos cuidar do irmão mais novo. Mas, embora a responsabilidade assumida seja pesada, ela não deixará de ser criança. Além disso, internamente ela também poderá ser favorecida pelas vivências maduras, assumidas precocemente.

Obviamente isso não descarta a necessidade da presença de alguém para auxiliá-la. Afinal, ela ainda é uma criança e precisará de um holding que seja... digamos... tolerante.

Do ponto “A” para o ponto “B”, até chegar ao ponto “C


Vou conduzir você para o universo adulto.

É claro, o que apresentarei aqui não é nenhuma tese de mestrado ou doutorado; é mais uma hipótese baseada por experiência empírica que consiste, ou melhor, consistiu em conversas, observações... convívio, de modo geral.

No começo de minha carreira com desenvolvimento de pessoas – conhecido como treinamento, na época –, eu tive a oportunidade de acompanhar, por 4 meses, um grupo de trainees de uma grande multinacional brasileira.

Eu já era psicólogo, mas tinha pouca prática no mundo corporativo; contudo, a sensibilidade para alguns comportamentos sempre se fazia presente, já que a realidade daquela galera, que ingressava na empresa, era disparadamente muito, mas muito distante da de outros jovens da minha época.

Com idades entre 22 e 25 anos, aqueles jovens seriam preparados para cargos estratégicos dentro daquela empresa.

Dá para imaginar um líder com 22 anos?

Hoje, em 2017, dá sim. Mas, em 2007, isso ainda era uma novidade.

Eu não vou discutir teses sobre as gerações. Se quiser aprofundar seus conhecimentos, compreendendo melhor eventos da geração beatnik até agora, recomendo a leitura do livro “Jovens Para Sempre”, de Sidnei Oliveira.

Enfim, era uma galera que possuía uma admirável riqueza interior: independência, autonomia, empatia, criatividade; isso sem falar em suas formações acadêmicas, concluídas em excelentes faculdades (alguns até com MBA, independentemente da pouca idade).

Ainda assim, não estavam emocionalmente preparados para assumirem cargos de liderança, mesmo após o fim do programa trainee. Eles sabiam tudo na teoria, tinham respostas e informações rápidas na ponta da língua, mas não tinham a prática; a experiência; a execução.

O fato de um bebê saber andar, não quer dizer que está preparado para correr uma maratona.

Isso leva tempo!

Sendo assim, o programa trainee nada mais era do que um grande ambiente criado para que o desenvolvimento profissional dessa galera ocorresse.

Naquele local haviam pessoas com experiências de vida variadas. Elas não eram “folhas de papel em branco”. Não dependiam necessariamente da relação triangular original, mas a recriavam... como direi... das 9h00 às 18h00:

  • Ponto “A” – eram completamente dependentes de informações sobre os processos internos, suas funções, políticas, cultura corporativa, dentre outros.
  • Ponto “B” – conforme o tempo passava e quanto mais experiências suficientemente boas elas tinham, tornavam-se onipotentes. A melhora dos processos de logística, por exemplo, fora considerado um grande feito para pessoas jovens e que mal haviam chegado na empresa. Mas, embora a ilusão dissesse que o resultado fora conseguido por elas, sozinhas, mediante suas formações e aproveitamentos teóricos, a desilusão mostrava que, por trás de um excelente resultado, havia a orientação de um gestor. Este, cumpria seu papel de holding
  • Ponto “C” – a independência era fruto de um handling (manipulação do objeto) bem aproveitado. Daí, vinha a combinação da teoria com a prática + a segurança no ambiente (gestor, pares, liderados).

Embora o que eu vá mencionar agora seja um tanto quanto óbvio, para nós, psicólogos, para inúmeras pessoas não é.

O que eu quero dizer é que, o setting terapêutico remonta a vida de cada pessoa. Lá dentro, na sala de terapia, cada um revive, interpreta, representa suas vidas. E se esse fenômeno acontece nesse local, porque não ocorreria também em outros ambientes, como o trabalho, casamento, namoro, escola, faculdade, amizade?

Poucos têm consciência disso, e muitos não acreditam nisso.

Não se assuste, pois, embora o cenário pareça inóspito, é aí que está o grande “filão” para você e todos nós, psicos: proporcionar o autoconhecimento e mais saúde emocional às pessoas.

Fazendo um trocadilho com um jargão corporativo, “a boa leitura de cenário” é importantíssima para compreender em que ambiente seu paciente cresceu; como ele reproduz isso em outros momentos; e se, fundamentalmente, ele é feliz com a vida que leva.

Tudo isso, sem precisar passar por uma sabatina de análises a cada minuto da sessão.

Digo isso, pois, nem sempre, a análise dos mecanismos mentais realizada por meio interpretação do inconsciente será necessária. Se a regra sempre for essa, rígida e inalterável, você, eu, todos nós estaremos somente fazendo a análise pela análise. Sempre. A todo momento.

Nós também podemos ser psicólogos, psicanalistas, terapeutas, fazendo outra coisa na sessão se for apropriado, pois, a vida, também nos mostra situações que exigem muito mais bom senso, do que ilusão de que tudo deve ter uma hipótese e um resultado imediato.

É como diz o grande “filósofo”, Ferris Bueller:

“A pergunta não é o que VAMOS FAZER, mas o que NÃO VAMOS FAZER. ”

Se o setting terapêutico remonta a vida de um paciente, permita-se estar presente nas experiências dele, naquele ambiente. Apenas isso! Não “fazer nada” e deixa-lo mostrar, refletir e agir por si próprio, também é fazer muito por ele.

Basta estar presente!

Quem disse que o manejo clínico só deve ocorrer em uma posição assimétrica, do psicólogo para o paciente?

Aliás, você não precisará mudar de calçada se um dia encontrá-lo na rua.

Recapitulando


Neste artigo, você:

  • Compreendeu que é possível ampliar o conceito de “ambiente suficientemente bom” para além da pessoa “mãe”, a partir de uma representação simbólica provida por outras pessoas.
  • Entendeu que o ambiente é importante em outras fases, e não apenas na dependência absoluta.
  • Verificou que gradativamente, o ambiente se tornará menos fundamental e a criança utilizará situações triangulares para substituir uma relação familiar original.
  • Identificou exemplos relacionados as fases de “dependência absoluta”; “onipotência” e “independência”, ambientada no mundo corporativo.
  • Recordou ou descobriu (depende de quanto tempo atua na área) que nós, psicólogos, podemos fazer outra coisa na sessão que não somente a análise pela análise.

E para complementar esse artigo, não percam o próximo vídeo “Meu ambiente favorito”.

Abração.

Autor Rodrigo Moreira

Rodrigo Moreira

@rodrigomoreira1009

Rodrigo Moreira é psicólogo e especialista em gestão de pessoas. Como consultor, tem sólida carreira desenvolvida em grandes consultorias de educação corporativa. É escritor, tendo lançado seu primeiro livro Ele não é isso pela Editora Arwen; e futuro psicanalista winnicottiano. Em seu “lado B”, é nerd, fã de Senhor dos Anéis e Star Wars. Tem, até hoje, seu quartel general, veículos e action figures dos G.I. Joe (Comandos em Ação).

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