A clínica winnicottiana

“Na teoria da clínica winnicottiana, interpretar não é o que define, de princípio, a tarefa analítica, pois a possível pertinência e/ ou benefício de uma interpretação, no sentido tradicional de interpretação do material inconsciente reprimido, dependem de um nível de amadurecimento do paciente que não pode ser presumido como dado.”  Elsa Oliveira Dias – Interpretação e Manejo na Clínica Winnicottiana


Os itens listados acima apontam para uma diferença importante entre a análise e interpretação psicanalítica tradicional, concebida por Freud, e a winnicottiana. Mas, antes de dar prosseguimento ao artigo, já aviso logo: isto não é uma discussão sobre quem está “certo” e “errado”.

Se quisermos discutir seja lá quem for, é importante sempre considerarmos a época, origem familiar, experiências profissionais, dentre outros, que incorporaram a vida desses pensadores. Obviamente você é livre para elaborar suas críticas, construir seu próprio raciocínio e transformar os conceitos em comportamentos.

Ora! Pois é assim que se aprende, não é?

Freud e Winnicott


Para Freud, é a partir do desequilíbrio da estrutura e funcionamento do psiquismo que se torna possível analisar e interpretar as neuroses, psicoses, insanidades. Existe uma realidade psíquica que constitui o ser humano.

Fica a dica!

Se quiser se aprofundar na estrutura e funcionamento do psiquismo à luz de Freud, recomendo a leitura do artigo “O Pensamento Metapsicológico, referência matricial sobre a psicanálise”.

Falando de Winnicott, o psiquismo (ou psique) constitui o ser humano tanto quando o soma (corpo). E para que o ser humano possa integrar-se, é necessário viver muitas experiências em sua vida, obtendo aquisições importantes.

Menciono aqui a vida imaginativa, que considero fundamental para transição e adaptação do bebê ao mundo externo.

Voltando... o que Freud diz sobre as estruturas psíquicas não é coerente, por exemplo, para o estudo das psicoses na psicanálise winnicottiana.

Pensando no amadurecimento do ser humano, a psicose tem sua origem em um ponto tão primitivo, que as estruturas psíquicas e demais formações (cognitivas e corporais), sequer foram desenvolvidas.

Assim, como ter um parâmetro sobre O QUE ESTÁ e NÃO ESTÁ em desequilíbrio se as estruturas ainda não foram formadas?

Volto ao ponto da integração, pois aquisições básicas como: cuidado ambiental, vida imaginativa, cultura, ilusão, desilusão, são importantes para determinar os conflitos vividos pelas pessoas, bem como a capacidade de suportá-los e ressignificá-los.

Se a análise e interpretação devem ocorrer, muito bem. Mas para que isso aconteça, é preciso que cada pessoa (paciente) chegue a um estágio em que tenha “bagagem”, aquisições suficientes, maturidade que, como dito na citação, “não pode ser presumido como dado”.

Caberá ao psicólogo facilitar esse caminho rumo a maturidade sem fazer uso indiscriminado da interpretação, mas tornando a experiência analítica em um verdadeiro encontro entre pessoas (relacionamento pessoal).

O manejo na clínica winnicottiana


... é o contexto de confiabilidade da análise e o manejo das condições ambientais do setting, e mesmo das condições ambientais gerais do paciente, o que deve ser primordialmente levado em conta.” Elsa Oliveira Dias – Interpretação e Manejo na Clínica Winnicottiana

O manejo – management –, significa o cuidado da mãe e do psicólogo com o ambiente, manejando-o ou sustentando-o para que seja confiável e favorável ao desenvolvimento emocional do paciente.

Sim, você pode entender o manejo como holding.

Na clínica winnicottiana, o ambiente vem primeiro, antes das análises e grandes interpretações. Então, se considerarmos que as pessoas procuram terapia devido a falhas ocorridas no ambiente, então, que este espaço seja o mais seguro possível, não é mesmo?

No ambiente, a qualidade de sua presença será importante.

Imagine essa qualidade como um encontro entre duas pessoas, em que experiências verdadeiras serão vividas. É algo como relembrar um momento importante na vida: férias, namoro, filhos, promoção. O paciente não viverá aquilo outra vez, mas resgatará sua importância.

O manejo do ambiente também inclui a agenda.

Isso mesmo. Não apenas a sua pontualidade no encontro com o paciente, mas ampliando a vida do consultório para ambiente geral: pais, escola, trabalho, casa, instituições.

Fica a dica!

Uma mostra clássica da expansão desse ambiente, foi o trabalho realizado por Winnicott a partir de entrevistas radiofônicas concedidas à BBC, entre os anos de 1939 e 1962. As conversas, direcionadas para os pais, tinham o objetivo de desmistificar a “ciência” na criação dos filhos, e dar a eles mais confiança. Esse conjunto de palestras resultou na obra “Conversando com os Pais”.

A interpretação na clínica winnicottiana


A confiança estabelecida pelo manejo adequado do ambiente, permite que o paciente passe da dependência absoluta (fusão com o psicólogo), para dependência relativa (uso psicólogo). Isto certamente constituirá experiências capazes de facilitar o seu amadurecimento. Desta forma, ele terá repertório para sentir-se integrado e aí sim, interpretado.

Veja, isto não é uma apologia à “não interpretação”. É apenas uma exposição a certos cuidados importantes. Ainda mais no começo de carreira, em que muitos psicólogos (eu passei por isso) ficam excitados por fazer GRANDES INTERPRETAÇÕES, daquelas de “explodir a cabeça”.

E acreditem: os pacientes também nos cobram isso.

Eu mesmo, após uma de muitas sessões com uma paciente em que pouco se falava, fui questionado no final: “Rodrigo, você não faz muitas interpretações, né?”

De início eu pensei que tivesse falhado, mas, como a qualidade do ambiente também envolve o silêncio, foi essa situação que proporcionou a ela conforto e tempo para ouvir a si mesma, e dar voz as suas sensações e emoções.

Ela pouco falava. Ela pouco manifestava seus sentimentos.

O que eu disse foi: “Acho que atingimos um nível de confiança tão legal aqui, que você se sentiu bem em falar isso comigo.”

E foi só. Ela sorriu, me abraçou e foi embora.

Eu a conhecia razoavelmente bem, pois estávamos juntos havia uns 4 meses. Ela não sofria de nenhuma psicose, mas quem disse que ela confiava no ambiente?

Deste modo, ela não estava preparada para ter seus conteúdos reprimidos revelados e interpretados inicialmente. Não porque ela fosse incapaz de fazer isso ao longo de sua vida, mas porque, naquele momento, ela ainda não era capaz.

Isso nos leva a duas distinções importantes para interpretação:

  1. Distinção entre profundo e primitivo.
  2. Distinção entre psique e mente.

1.a) profundo

O princípio e bem simples: para que haja algo profundo a ser analisado e interpretado, é necessário que antes haja um “dentro”.

Isso aí, “dentro”.

Mas “dentro” de onde, Rodrigo?

Dentro da pessoa, ué! Falo aqui de uma integração já conquistada, de uma realidade que faz parte de seu ser. Aqui, estão inclusas suas fantasias inconscientes, frustrações, repressões.

Esse é o ponto onde ocorrem as interpretações nos casos de neurose.

As neuroses, vou pegar a ansiedade como exemplo, embora desequilibrem a vida emocional e até a fisiológica, ainda assim não impedem as pessoas de seguirem com suas vidas.

Contudo, tais distúrbios são resultados das falhas ambientais ocorridas nas experiências de vida das pessoas. Quer dizer, não há um “vazio”, há um repertório já formado... um “dentro”, ainda que precise de reparos.

1.b) primitivo

Desconhecer a existência de dissociações primitivas, ocultas aos conflitos do inconsciente reprimido, leva o psicólogo a “estar em algum lugar sem que o paciente tenha chegado” – Winnicott.

Esse “primitivo” se relaciona ao início da vida do bebê, a sua dependência absoluta. É claro, quando ele nasce, alguns fatos e falhas no ambiente podem ser observados.

Mas, e o que acontece na vida intrauterina? E a pré-concepção do bebê?

Certamente são fontes de informação que merecerão uma pesquisa detalhada para constituir uma boa anamnese, e que nem sempre serão reveladas em sua totalidade. Parte pelos próprios conteúdos reprimidos, e parte pela incapacidade do psicólogo em acessá-los.

Não questiono aqui a competência profissional, mas as variáveis que contribuem para que isso aconteça. A desistência da terapia, por exemplo, é uma delas.

Esse é o ponto onde ocorrem as interpretações nos casos de psicose.

Pessoas psicóticas têm sua capacidade de viver, pensar, interpretar a realidade alteradas. Alucinações são confundidas com o real e vice-versa.

Deste modo, é necessário que o “primitivo” receba experiências capazes de ressignificar a relação mãe-bebê, e conferir a pessoa um nível determinado de amadurecimento para que enfim, seus dilemas tornem-se profundos e estejam “dentro”.

De uma maneira mais prática, para àqueles pacientes neuróticos, com um melhor nível de amadurecimento emocional, a interpretação será uma ótima ferramenta; agora, tratando-se de pacientes psicóticos e até mesmo com tendência antissocial, o que importa é o ambiente: o holding.

Fica a dica!

Faça uso de sua empatia e construa um relacionamento humanizado com seu paciente. Como ilustrado no caso, a pessoa atendida por mim não era psicótica, havia acumulado boas experiências em sua vida, mas muitas questões ligadas ao acolhimento e a confiança materna e paterna a pegavam de jeito. Assim, a relação transferencial constituída entre duas pessoas (eu e ela – psicólogo e paciente), abriu caminho para confiança e aí sim, o uso da interpretação de maneira peculiar.

2) Psique e mente

Para Winnicott, a totalidade do ser humano se dá pela integração gradual entre soma e psique. Se as experiências primitivas forem boas, ou seja, se os cuidados maternos que naturalmente podem conduzir o bebê de um estágio de ilusão para o de desilusão forem favoráveis, a mente, responsável pela cognição ou intelecto, irá aflorar.

Entenda a mente como um elemento da psique que evolui a partir de uma “boa conversa” entre psique-soma.

Antes das funções intelectuais, a relação do bebê com o mundo (sua mãe) é simbólica, imaginativa, emocional – psique. O bebê irá reagir aos estímulos, ao toque, ao calor, aos sons, aos gostos, expressando fisicamente o que emocionalmente o afeta – soma.

A mente irá emergir na transição da dependência absoluta para a relativa. Esse é o caminho saudável, quando no período primitivo as funções mentais não precisam agir.

O oposto disso, quando o bebê faz uso da mente no período em que deveria viver suas experiências imaginativas e corporais, significa que ele foi colocado em uma espécie de “alerta preventivo” contra as invasões ambientais.

Você já deve ter ouvido ou feito esses comentários uma vez na vida:

“Aquela pessoa é racional demais, não abstrai nada”.

“Desde criança ela é super madura”.

Não dá para afirmar nada sem antes conhecer a história de vida das pessoas, mas a inabilidade de se relacionar de forma simbólica em certas circunstâncias da vida, pode mostrar uma pessoa que teve uma etapa de seu desenvolvimento antecipada, sendo privada de viver outras em sua plenitude.

Por esse motivo, fazer uso da interpretação antes que o paciente esteja preparado, antes que ela passe do primitivo para o profundo, poderá fazer com que ele reviva esse “alerta preventivo”.

Continuarei esse assunto no vídeo Construindo o lado de dentro. Afinal, todos nós precisamos ter nossa vida interna preenchida e reforçada para alcançarmos e mantermos nossa capacidade de ser no mundo, já dizia Winnicott.

Recapitulando


Neste artigo, você:

  • Entendeu que existem diferenças entre a análise e interpretação da psicanálise freudiana e winnicottiana.
  • Compreendeu que para Freud era importante o desequilíbrio das estruturas psíquicas para realização da análise.
  • Observou que para Winnicott, as relações pessoais construídas das experiências, são tão importantes quanto a análise e a interpretação.
  • Conferiu as diferenças entre os conceitos “profundo e primitivo” e “psique e mente”.
  • Identificou as diferenças na clínica winnicottiana do tratamento de pacientes neuróticos e psicóticos.
  • Conferiu que na neurose, a interpretação é possível devido as experiências e maturidade adquiridas.
  • Distinguiu que na psicose, o manejo (holding) é essencial para facilitar um ambiente capaz de colocá-lo em um estado de “dentro”, onde a interpretação poderá ser realizada.
Caso você se interesse por aprofundar seus estudos, este artigo teve como base o livro “Interpretação e Manejo na Clínica Winnicottiana”, de Elsa Oliveira Dias.

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Um abração e até a próxima.

Autor Rodrigo Moreira

Rodrigo Moreira

@rodrigomoreira1009

Rodrigo Moreira é psicólogo e especialista em gestão de pessoas. Como consultor, tem sólida carreira desenvolvida em grandes consultorias de educação corporativa. É escritor, tendo lançado seu primeiro livro Ele não é isso pela Editora Arwen; e futuro psicanalista winnicottiano. Em seu “lado B”, é nerd, fã de Senhor dos Anéis e Star Wars. Tem, até hoje, seu quartel general, veículos e action figures dos G.I. Joe (Comandos em Ação).

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