O uso de testes: problema ou solução?

Quando falamos em testes psicológicos é impossível não lembrar do nome Binet. E a história por trás desse nome nos ajuda a refrescar muito o porquê e o papel do uso de testes na prática da psicologia, e em especial da Neuropsicologia. Como toda aula de psicometria que eu dou, esse texto (assim como o vídeo) trará um “Q” de desconforto necessário para aprimorarmos nossa prática clínica.

Refresquemos então a história para que nunca nos falte bases para o entendimento.

Apesar do início do desenvolvimento e uso de testes ser anterior a essa data, foi em 1904 que temos o marco da testagem psicológica moderna com Alfred Binet. Encarregado de criar um método que avaliasse crianças que não eram capazes de se beneficiar do sistema regular de educação, juntamente com seu colaborador T. Simon, desenvolveu a escala Binet-Simon.

Essa é conhecida como a primeira escala de mensuração da capacidade intelectual geral, a qual foi sendo refinada e aprimorada com o passar dos anos, e dando origem a outros instrumentos.

Na história de Binet já vemos alguns pontos muito relevantes:

• o teste psicológico surge como resultado de uma teoria consolidada e por uma necessidade clínica/experimental.

• o resultado do teste reflete o que ele objetiva medir, e esse resultado serve como base para promoção de condutas. No caso do Binet, resultou no desenvolvimento de escolas que fossem capazes de oferecer um sistema educacional compatível com a capacidade das crianças que não se adequavam ao sistema tradicional.

• os testes precisam ser adequados e aprimorados diante de mudanças teóricas, comprovações científicas e mudanças culturais da população.

Falar sobre testes psicológicos relembra sempre sua definição: “é um procedimento sistemático para obtenção de amostras de comportamento relevantes para o funcionamento cognitivo ou afetivo, e para a avaliação destas amostrar de acordo com certos padrões” (Urbina, 2007, pag. 11).

É crucial mantermos sempre em mente que o teste é um meio e não um fim! Vou repetir isso algumas vezes aqui e no vídeo, porque essa informação parece ser esquecida na pressa, desespero ou falta de preparo ao usar testes na clínica!

O teste tem como objetivo ser capaz de mensurar, ou seja, quantificar um comportamento (seja ele cognição ou afeto/humor).

É para isso que ele foi desenvolvido e para isso que deve ser usado. Em diferentes momentos da nossa prática somos convidados pelo raciocínio clínico a nos valermos desses instrumentos de medidas a fim de que tenhamos mais respaldo em nossas avaliações.

Observem que eu disse MAIS respaldo, e não que o teste é a única forma de dar respaldo a uma avaliação.

Constructos


A ideia central dos testes psicológicos que permitem seu uso e interpretação é a base teórica que permite que conceitos e teorias sejam consideradas constructos, ou seja, que elas possuem uma manifestação comportamental que pode ser evocada através das tarefas/itens/perguntas de um teste desenhado para isso.

A teoria com forte evidência antecede sempre (ou pelo menos deveria, e o faz em bons testes) a criação do instrumento. Primeiro precisamos saber o que é o constructo e como ele se manifesta para então criarmos (ou escolhermos) o teste que o avaliará.

Mas e na clínica Laiss?

O raciocínio é o mesmo.

Vejamos. Se o teste é um meio, um instrumento da avaliação, isso significa que por si só ele não é toda a avaliação. O uso de testes é uma etapa que pode ou não acontecer durante uma avaliação.

Essa minha última frase implica que se você, profissional, vai usar o teste, deve saber bem o porquê de o estar fazendo. Nós profissionais, no cenário da avaliação (como já discutimos um pouco em um dos meus primeiros vídeos), temos que lembrar que a avaliação é um processo investigativos amplo. E que na neuropsicologia respeita sempre o processo de raciocínio hipotético-dedutivo.

Primeiro formulamos hipóteses através do raciocínio clínico, que guiarão a decisão pelo uso ou não de algum instrumento, tendo em mente que o seu raciocínio clínico guia qual constructo precisa ser avaliado. Só depois de estar com suas hipóteses clínicas e com os constructos em mente, e mais algumas informações psicométricas relevantes, é que partimos para a escolha do instrumento.

Nunca, nunca, nunca o contrário!

Temos o papel como profissionais que detém um conhecimento de lançar mão ao melhor instrumento de acordo com nossas hipóteses, características do cliente e outras informações relevantes ao raciocínio clínico de qualidade. Por isso, lembrem-se que protocolos fixos podem ser um belo buraco em que muitos profissionais caem pelo comodismo.

Na Neuropsicologia


Na neuro recorremos frequentemente ao uso de testes para mensurar os diversos domínios cognitivos que temos, mas por que?

Porque procuramos usar dois modelos interpretativos para construir uma boa avaliação baseada em evidências: os modelos nomotético e o idiográfico.

• No nomotético procuramos comparar o desempenho do cliente com a padronização, ou seja, como que seria esperado para uma população similar a ele. Dessa forma identificamos oscilações e padrões que sejam raros do ponto de vista estatístico para nós.

• No modelo idiográfico procuramos comparar o desempenho do cliente com ele mesmo. Seja olhando por forças e fraquezas cognitivas, seja comparando ele ao longo do tempo.

Eis que o uso de instrumentos nos fornece uma confirmação a mais (veja que digo A MAIS) de que as queixas apresentadas ecologicamente são identificadas de forma quantitativa.

Quando digo A MAIS é porque uma vez que o teste é um meio e não um fim, o cliente deve apresentar queixas e evidências ecológicas de que aquele domínio, medido pelo teste, realmente sinaliza a presença de déficits, por exemplo.

A confirmação a mais, vem através da medida fornecida pelo teste e da interpretação quantitativa. É por isso que já falamos aqui no canal sobre a importância da estatística. (Veja aqui A importância da estatística na psicologia e A estatística do bem).

Depois do erro no entendimento do propósito dos testes, e de seu manuseio, o erro mais comum que vejo nos profissionais é em saber interpretar e lidar com os valores (a parte da matemática). É relevante frisar que se o profissional escolheu usar um teste que o permite uma comparação porpulacional/amostral/nomotética, é importante que ele saiba usá-la.

Não adianta usar um instrumento e na hora da interpretação, partir para o achismo: “eu acho que o desempenho está ruim/bom”.

Lembrem-se: se escolherem avaliar um domínio através de um teste, é porque a sua interpretação nas normas e parâmetros tem como papel acrescentar robustez ao seu raciocínio clínico, e não, ser uma fonte de falha.

No vídeo falarei sobre os outros cuidados que temos que ter no uso de instrumentos.

Por aqui, apesar do tom de alerta e um leve puxão de orelha, quero deixar a impressão que mais importa:

Testes são instrumentos, meios para avaliar um domínio, e nunca, o fim ou até mesmo toda a avaliação. Lembrem-se que testagem é uma parte da avaliação que pode ou não ser utilizada. E que para ser utilizada precisa ser feita de forma consciente, embasada teoricamente e com domínio.

Não é saudável que o nosso raciocínio clínico se esconda ou seja engolido pelos resultados de testes escolhidos sem propósito.

Pensem nessa reflexão crítica que tentei trazer. Testes são uma dádiva do conhecimento científico, o problema nem sempre está neles, mas sim no uso que corremos o risco de fazer deles por falta de preparo.

Até o vídeo!

Autor Laiss Bertola

Laiss Bertola

@laissbertola

Laiss Bertola é neuropsicóloga clinica, supervisora e professora. Doutora pela UFMG e pesquisadora da relação entre o cérebro e a cognição/comportamento. É apaixonada pelo cérebro e pela neuropsicologia, e busca através de suas ações profissionais melhorar a atuação do profissional interessado nessa área através do eixo fundamental teoria-prática.

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