A estatística do bem

Quando falamos de estatística a maioria de nós psicólogos estremece, aparece uma ansiedade e um suor frio... Então, para aqueles que estiverem com essa reação emocional ativada: parem um pouco, respirem e regulem o eixo HPA (hipotálamo-pituitária-adrenal) para poderem extrair o melhor desse importante tópico.

Vou começar dizendo o por quê de eu ter escolhido logo esse tema para abordar no canal: justamente porque ele gera as reações acima! Evitamos estatística na faculdade, quando sobrevivemos a ela pensamos: “Glória! Nunca mais!!!”. Quando eu começo a falar dela em aula de pós-graduação a reação não é muito diferente: “Sério? Preciso mesmo?”. A resposta sim! Precisa e muito!

Quem quer ser um bom profissional e, especialmente quem escolher trabalhar na área de neuropsicologia e avaliação vai precisar muito e saber como usar esse conhecimento é a chave da boa atuação.

A importância da estatística


Não atuo em neuropsicologia ou com avaliação em geral então estou liberado, né?

Ainda não, espera mais um pouco e reflita comigo. A cada dia temos mais e mais informações novas sendo publicadas. A cada dia a psicologia cresce como ciência e busca evidências de suas práticas e teorias, certo? Pois bem, a estatística é crucial para quando estudamos uma atualização de nossa área.

Quantas vezes vi chamadas falsas compartilhadas sobre a cura disso ou daquilo, a causa disso ou daquilo. Se ao menos os profissionais abrissem os estudos originais e compreendessem o que aqueles números querem nos dizer não teríamos tantas informações circulantes por ai de forma falsa.

Vou dar um exemplo normalmente polêmico: autismo e vacina.

Se todos tivessem lido o artigo original com cuidado veriam que o autor se refere a uma correlação (espúria para ser mais exata) e não a uma causalidade. E se procurassem mais informações, veriam que todos os demais estudos que procuraram verificar a relação entre os dois de forma causal não encontraram nada...

O que isso implica? Em informações mal interpretadas sendo propagadas e embasando atuações de forma frágil e perigosa.

Então, tudo bem. Você não precisa saber fazer análises, mas saber entender quando elas aparecem e ter julgamentos críticos, isso enriquece muito a nossa atuação profissional. Ninguém quer sair por aí propagando a cura do Alzheimer fundamentado em estudos que (muito infelizmente!) ainda não nos permitem afirmar isso.

E para quem trabalha com avaliação?

Para quem tem o deleite de trabalhar com avaliação não tem como escapar e nem pode! Temos que amar a estatística com todo nosso coração (para ficar mais romântico).

Para nossa área, quando lançamos mão de estratégias e instrumentos de mensuração da cognição/comportamento, precisamos saber o que fazer com os números. Saber o que esses números querem dizer auxilia nosso raciocínio clínico desde o diagnóstico até a proposta de intervenções.

Com a certeza de que nenhum de nós quer identificar um déficit quando não existe ou deixar de identificá-lo quando ele existe porque não entendemos de estatística, afetando a qualidade do nosso trabalho e consequentemente a vida de nossos clientes, falarei de alguns pontos: modelos e métricas.

Tomarei como base a avaliação neuropsicológica para abordar esses pontos. Na neuropsicologia trabalhamos com dois modelos principais de comparação do desempenho do nosso cliente: o nomotético e o idiográfico (Carone, 2007; Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo, & Cosenza, 2014).

Modelo Nomotético


No modelo nomotético comparamos o desempenho do cliente com uma amostra extraída da população base para verificar se seu desempenho está dentro dos limites estatísticos estabelecidos.

Exemplo: João, um idoso de 65 anos com queixas de memória episódica, realiza a avaliação neuropsicológica para saber se seus esquecimentos estão dentro do esperado para seu momento do desenvolvimento.

Na opção de recorrer ao uso de um teste de memória episódica para mensurar o desempenho de João, seu resultado deverá ser interpretado como estando ou não dentro do esperado.

Essa é a lógica do modelo nomotético: comparar João com outros idosos de sexo masculino, em seu grupo etário e com mesmo alcance de escolarização. Esses critérios de comparação podem oscilar de acordo com a importância que a idade, escolaridade ou sexo possuem no desempenho de determinados aspectos cognitivos.

Para esse modelo recorremos a famosa curva normal. Essa curva tem como objetivo traçar o desempenho da amostra, distribuindo seus resultados de forma que seja possível identificar um intervalo de desempenho classificado como normal, outro como baixo e outro como superior.

E como isso é feito?

A resposta mais ampla (mas não a única) é respeitar que na faixa considerada normal de desempenho esteja 95% da amostra, apenas 2,5% na faixa inferior e apenas 2,5% na faixa superior.

Esses intervalos são traçados com base na média da população e em sua oscilação média de desempenho.

Nesse momento, damos boas-vindas a matemática!

A média é um valor estabelecido pela soma do desempenho de todos da amostra dividido pelo número de pessoas nela. Assim achamos um ponto médio de desempenho para orientar o centro da curva.

Como sabemos que não somos robôs e que nosso desempenho pode oscilar, é preciso estabelecer um intervalo de oscilação aceitável do desempenho. Para isso usamos o valor do desvio-padrão. Ou seja, o valor médio de distância que cada pessoa da amostra tem da média que foi estimada. Esse desvio é que nos permite construir os intervalos.

Lembram dos 95% da amostra dentro da faixa considerada normal ou média? Nela estão os desempenhos de pessoas que oscilam da média em até duas vezes o desvio padrão para mais ou para menos. Normalmente quem tem desempenhos inferiores ou superiores oscilou mais do que duas vezes, e portanto, encaixam nos 2,5% mais extremos da população.

Se pegarmos João novamente, e ao analisarmos o seu desempenho de memória episódica seu valor oscila apenas um desvio para baixo da média, seu resultado sugere uma memória dentro do esperado! Mesmo que o valor seja negativo. Voltarei nesse ponto delicado no vídeo, ok?

No modelo nomotético usamos também outras métricas como o famoso e conhecido Percentil.

Essa classificação ranqueia os desempenhos dos mais altos aos mais baixos, estabelecendo os limites de oscilação assim como ocorre na curva normal. Dessa forma, sua interpretação é muito similar, a diferença é apenas a forma de conversão estatística do valor em números que nos permitam fazer essa comparação com respaldo matemático e não em nosso achismo.

Um detalhe importante: saber se nossa amostra comparativa é ou não normal também é essencial para não errarmos. Testes com efeito de teto, efeito de chão, ou amostras pouco representativas da nossa população podem nos enganar. Cuidado!

Resumindo: o modelo nomotético se vale de métricas estatísticas que nos permitem comparar o desempenho do João com outros idosos similares e responder se sua memória episódica está conforme o esperado para sua idade, ou não.

Modelo Idiográfico


No modelo idiográfico comparamos o desempenho do cliente com ele mesmo. É uma visão mais individualizada do sujeito, que considera particularidades em níveis superiores ao nomotético. Mas nem por isso se distancia da matemática.

Nesse modelo João poderia ser comparado a um pequeno grupo de pelo menos 5 idosos muito similares a ele, ou poderia ser comparado a ele mesmo em dois tempos distintos.

Imaginemos que João fez sua primeira avaliação neuropsicológica e descobrimos que sua memória permanece dentro do esperado pelo modelo nomotético. Um ano depois ele retorna para uma nova avaliação com a mesma queixa de que sua memória episódica está funcionando abaixo do que costumava. Nesse momento, tendo os valores da primeira e segunda avaliação de João, podemos além de usar o modelo nomotético, usar o idiográfico.

Podemos nesse momento comparar João no tempo 1 com João no tempo 2 (após um ano), e verificar se quando comparado a ele mesmo, sua memória episódica de fato declinou em uma velocidade acima do esperado, mesmo que ela permaneça dentro da faixa nomotética da normalidade.

Mas atenção! Minha recomendação clínica é: não trabalhem apenas batendo o olho nos valores pois eles podem ser enganadores. Temos cálculos estatísticos que nos permitem ver se perder 2 ou 10 pontos é significativo ou não. Se não for, a mudança de desempenho está apenas acompanhando o desenvolvimento humano conforme o esperado. Ok? (vou deixar algumas indicações de leitura ao final).

Associando modelos


Quando somos capazes de entender a estatística, identificando com acurácia o desempenho do meu cliente, respaldando com maior segurança minhas conclusões clínicas, a associação dos modelos se torna uma forma de atuação muito mais robusta.

Quando entendemos conversões estatísticas, ou seja, métricas como média, desvio-padrão, percentil, escores T ou Z, entre outros, aumentamos a robustez da árdua tarefa de transformar conceitos abstratos em constructos mensuráveis. A cognição e o comportamento humano são complexos mesmo, e se nos deixarmos levar pelos números olhando sem os óculos da estatística, erros acontecem.

Os erros na interpretação estatística dos resultados de testes são mais comuns do que se imagina e falarei de muitos deles no vídeo. Infelizmente, não é raro que eu veja avaliações onde desempenhos normais são classificados como deficitários. E a evitação dos profissionais em lidar com essa faceta do conhecimento só aumenta as chances disso acontecer.

A área de avaliação e neuropsicologia é linda, eu sei! E a estatística é apenas mais uma de suas belezas não é? Não é atoa que entre os conhecimentos fundamentais para se atuar nessa área é estatística. E não muito distante da psicologia como um todo, ou em nossa grade curricular não seríamos expostos a esse conhecimento.

Lembre-se de que o seu receio ou ojeriza de estatística compromete a sua pratica e a vida do seu cliente mais do que o desconforto inicial de saber lidar com números em um meio onde o abstrato é lei.

O que eu quero trazendo esse tópico? Mostrar que para quem entende de tantos conceitos abstratos, entender matemática não pode ser um bicho de sete cabeças. Ainda mais, saber usar desses conceitos só tem a acrescentar e aperfeiçoar nossa prática profissional.

Então nada de: “Cruzes!” ou “Matemática/Estatística não!” ou “Eu não fiz Psicologia para estudar matemática/estatística!” e partiu extrair delas o melhor para o campo da psicologia.

Leituras recomendadas

Bertola L, Júlio-Costa A, Malloy-Diniz LF. Como elaborar um estudo de caso usando a estatística. In: Malloy-Diniz LF, Mattos P, Abreu N, Fuentes D, editors. Neuropsicologia aplicações clínicas. 1o. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 193–208.

Urbina S. Fundamentos da testagem psicológica. Porto Alegre: Artmed; 2007.

Referências

Carone, D. A. (2007). E. Strauss, E. M. S. Sherman, & O. Spreen, A Compendium of Neuropsychological Tests: Administration, Norms, and Commentary. Applied Neuropsychology, 14(1), 62–63. https://doi.org/10.1080/09084280701280502

Fuentes, D., Malloy-Diniz, L. F., Camargo, C. H. P., & Cosenza, R. (2014). Neuropsicologia teoria e prática (2nd ed.). Porto Alegre: Artmed.

Autor Laiss Bertola

Laiss Bertola

@laissbertola

Laiss Bertola é neuropsicóloga clinica, supervisora e professora. Doutora pela UFMG e pesquisadora da relação entre o cérebro e a cognição/comportamento. É apaixonada pelo cérebro e pela neuropsicologia, e busca através de suas ações profissionais melhorar a atuação do profissional interessado nessa área através do eixo fundamental teoria-prática.

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