O relacionamento do início da civilização Ocidental até os dias de hoje

Para trabalhar com terapia de casal, acredito que é importante saber um pouco do histórico do papel dos relacionamentos ao longo do tempo. Por isso, neste artigo vamos explorar como o conceito de relacionamento vem sendo construído e modificado ao longo do tempo.
Casamento é uma construção e a forma de se relacionar está sempre se modificando. Por isso, é importante entender como essa construção pode afetar os relacionamentos atualmente.
O lugar do casamento e dos relacionamentos amorosos em geral tem mudado bastante. Antigamente, víamos que o casamento era o projeto de vida de muitas pessoas e que isso era primordial. Hoje, vemos que há intensa valorização do trabalho, da liberdade e da individualidade, não sendo o casamento e os relacionamentos amorosos estáveis tão essenciais.
McGoldrick (1995) ratifica que o lugar do casamento no ciclo de vida tem mudado bastante, já que os homens e as mulheres estão fazendo sexo cada vez mais cedo, se casando cada vez mais tarde e vivendo junto antes de casar.
Antigamente o casamento era o principal marco de transição para a vida adulta, já que ele simbolizava a transição para a paternidade, mas hoje em dia ele reflete uma continuidade da fase adulta jovem, pois o nascimento dos filhos está sendo cada vez mais adiado. Além disso, o casamento era considerado como fundamental para uma vida adulta completa, como algo inevitável. Recentemente, essas normas foram modificadas, pois uma parte da população não se ajustava a esse padrão.
O próprio significado do casamento foi sendo modificado de acordo com o tempo e com a cultura.
Inclusive, mesmo dentro da mesma cultura, como a nossa Ocidental, ele foi mudando com o passar do tempo, como aponta Gilbert (2010), que traça um histórico sobre o assunto.
O casamento na história
No início da civilização Ocidental, as pessoas se casavam por conta da segurança física, pois a família era a unidade de trabalho fundamental. Todas as necessidades básicas provinham da família, como companheirismo, procriação, alimentação, moradia, educação, defesa, etc. Assim, quanto mais parentes se tinha, mais seguro era. A enorme família extensa era parceira na luta pela sobrevivência.
Com o Novo Testamento, houve uma revolução, pois o ideal que o cristianismo passou a pregar para a sociedade foi o de celibato, companheirismo e pureza absoluta, seguindo o exemplo de Cristo e rejeitando o casamento e a sexualidade. Durante cerca de dez séculos, o casamento não era algo sagrado nem santificado para o cristianismo.
Esse novo paradigma contrasta com o da sociedade hebraica, que “sempre viu o casamento como o arranjo social mais digno e moral de todos” (p. 59), onde o sexo dentro do casamento não era pecado, era algo natural, fonte de prazer e de crescimento da sociedade judaica.
Apesar dessa nova visão, as pessoas não pararam de se casar, exceto os mais devotos.
No início da história européia, na Idade Média, o casamento passou a ser uma convenção puramente civil, pois a família não precisava mais prover a segurança já que as pessoas passaram a viver em cidades e aldeias e não precisavam mais lutar pela sobrevivência. Com isso, o matrimônio passou a ter o objetivo de gerenciar a riqueza e a ordem social.
Nessa época, os bancos, leis e governos ainda eram muito instáveis e o casamento se tornou um acordo comercial importante, sendo o melhor modo de passar a riqueza de uma geração para outra. Assim, conseguir um bom cônjuge era uma garantia de estabilidade futura, sendo as uniões bem oportunistas, muitas vezes.
As cerimônias de casamento não tinham muita importância nesta época. Eram apenas votos trocados em breves cerimônias improvisadas e as testemunhas apenas serviam para que não se discutisse posteriormente no tribunal se o casamento foi consentido, o que era fundamental quando envolvia dinheiro, bens, propriedades ou filhos.
As cerimônias consideradas tradicionais atualmente, só surgiram a partir do século XIX quando a Rainha Vitória entrou na igreja com um vestido branco, lançando moda e inaugurando a tradição.
Durante a Idade Média, no século XII, surgiu com os trovadores, que eram nobres da Provença, a primeira manifestação do amor como conhecemos atualmente, como uma relação pessoal: o amor cortês, como conta Lins (2007).
A liberdade e a aventura faziam parte desse amor, que não cabia no casamento, já que este era um contrato comercial, sem considerações pessoais, onde não podia haver amor, já que o desejo estava ligado à perturbação e à desordem, podendo apenas haver estima. Os trovadores rejeitavam o desejo de possuir suas damas e exaltavam o amor insatisfeito, revolucionando com o conceito de cavalheirismo.
A partir desse século, o amor passou a ser considerado nobre pela sociedade e os trovadores passaram a ser tratados pela aristocracia como seus iguais.
Para ser aceito pela Igreja, o casamento deveria ser indissolúvel, o sexo somente poderia ser feito para procriação e o casal não deveria ter prazer com a relação sexual. Os casamentos eram arranjados e cabia a mulher apenas servir ao homem. O ideal do amor cortês transformou o comportamento de homens e mulheres em relação ao amor e com o amadurecimento dessa revolução originou-se o romantismo.
E a partir dessa visão, passa a haver uma visão ambígua sobre a mulher: ela era a encarnação do puro, do sagrado e do completo, mas ainda era vista como inferior.
A frouxidão nos casamentos e a quantidade de divórcios dessa época é para Gilbert (2010) a característica mais espantosa desses relacionamentos, pois as pessoas se casavam e se separavam por questões econômicas e pessoais facilmente. Essa frouxidão teve fim com o envolvimento da Igreja Católica no matrimonio, ocorrido no século XIII.
O ideal do início do cristianismo havia se acabado e os padres, que estavam envolvidos na política, e não se agradavam com a criação e o rompimento de diversas alianças políticas criadas pelos casamentos e divórcios da realeza européia.
“Assim, no ano de 1215, a Igreja assumiu para sempre o controle do casamento, com novos éditos rígidos sobre o que, a partir de então, seria um casamento legítimo.” (p. 65) Os casamentos clandestinos e os divórcios foram proibidos e o casamento somente podia acontecer com o consentimento da Igreja, passando a ser uma questão religiosa.
Tamanho controle piorou principalmente a vida das mulheres, pois os homens podiam procurar sexo e amor fora do casamento, mas para as mulheres, principalmente as da elite, isso era intolerável.
Outra questão era que a mulher deixava de ter direitos jurídicos próprios e de ter propriedades pessoais quando se casava, passando tudo para o seu marido. Nada era concedido à mulher. Apenas no século XVI, na Europa, que o divórcio passou a ser aceito novamente.
Lins (2007) contextualiza que, na Idade Média, o amor romântico, que é culturalmente exclusivo do Ocidente, considera o objeto amado como muito precioso, mas muito difícil de possuir. Havia a ideia de que era impossível um homem amar e respeitar profundamente uma mulher e vinculá-la a ideia de relação sexual.
Revoluções, mudanças e novos paradigmas
Somente após a Revolução Francesa e a industrialização é que se passou a pensar no casamento como resultado do amor romântico. Nesse tipo de amor, os amantes amam a ideia de amar e não a outra pessoa em si e o amor sublime predomina sobre o ardor sexual. Muitas vezes ele pode ser a primeira vista, mas tem que ser considerado de forma separada da paixão sexual.
Com o surgimento da família burguesa, surge também a ideologia do amor materno e do amor romântico, associados à subordinação da mulher.
Em meados do século XVIII, Gilbert (2010) aponta que houve o início do movimento de liberdade conjugal.
As democracias liberais estavam crescendo e havia grande impulso social para mais liberdade, privacidade, possibilidade de escolha e busca da felicidade pessoal sem abdicar de si e colocar o outro em primeiro lugar. A renda pessoal também aumentou com o avanço da Revolução Industrial e os casais agora podiam comprar sua casa própria ao invés de morar com a sua família extensa durante toda a vida.
Com isso, veio a privacidade, em que “depois de fechadas as portas da casa, sua vida era sua.” (p. 75)
Logo em seguida em que as pessoas passam a escolher seus companheiros por amor e o casamento é cada vez mais baseado nas necessidades do indivíduo e menos baseado nas necessidades da sociedade, há o aumento do divórcio, em meados do século XIX. Gilbert (2010) verifica que “sempre que uma cultura conservadora, de casamentos arranjados, é substituída por uma cultura expressiva em que o parceiro é escolhido com base no amor, o número de divórcios começa imediatamente a disparar.” (p. 77)
Em 1849, um tribunal permite que o casamento acabe por falta de amor e de felicidade e não apenas por agressão, negligência ou adultério.
Com essa transformação do casamento, a instituição se alterou bastante, pois os casamentos baseados no amor são tão frágeis quanto o próprio amor, o que torna o casamento um grande risco, pois o processo de divórcio gera o que a autora chama de “caos emocional” (p. 78) e de “bola de demolição psicológica, emocional e econômica” (p. 79).
Isso acontece por conta de grande ambivalência emocional, já que as emoções são constantemente contraditórias para com o ex-cônjuge.
A partir da década de 60, com a pílula anticoncepcional e a revolução feminista, o sexo é dissociado da procriação. Consequentemente, Lins (2007) afirma que o casamento não é mais necessário para serem mantidas relações sexuais regulares e muitos casais vão apenas morar juntos, sem se casarem de fato.
A instituição casamento é abalada, pois é pensada como sendo uma privação de liberdade, sacrificante e limitadora da pessoa.
O temor agora é de que o casamento estrague a relação.
O casamento passa a significar uma relação fixa e estável, em que as pessoas não precisam nem mais morar sob o mesmo teto nem assinar papéis.
Outra mudança importante foi o papel que a auto-realização individual passou a ocupar. Atualmente cada vez mais cresce a crença de que a relação amorosa não deve exigir sacrifícios. A relação é vista como uma oportunidade de crescimento pessoal, ou seja, o outro tem que acrescentar algo.
A questão agora é a não disposição a abrir mão de seus projetos pessoais e prol da relação, verificando mudança no paradigma.
Como o ideal do amor romântico é tão presente e importante nos relacionamentos atuais, vamos continuar nossa história com ele.
Como o mito do amor romântico pode influenciar nos relacionamentos atuais
Atualmente o casamento é sinônimo de felicidade e uma meta desejada por todos.
Mas a felicidade no casamento depende da expectativa que se tem dele.
Normalmente as pessoas esperam que o amor no casal seja recíproco e para sempre. Só que a média de vida da população está maior e, consequentemente o casamento para sempre irá durar muitos anos, o que muitas vezes é difícil de imaginar uma relação de perdure por 50, 60 ou 70 anos.
Bauman (2004) acredita que um casal se escolhe por afinidade e a intenção da afinidade é ser como o parentesco: incondicional, irrevogável e indissolúvel, mas como ela nasce da escolha, é necessário que seja confirmada e construída diariamente ou então se definhará e acabará.
Gilbert (2010) acrescenta que um matrimônio baseado no amor é mais frágil do que se pensa e os votos que são feitos na cerimônia são uma tentativa de camuflar essa fragilidade. Não se pode garantir que o casal se amará para sempre, como é prometido. Isso faz parte do ideal romântico que ainda é o esperado pela sociedade.
Para Lins (2007), muitas pessoas "na nossa cultura estão aprisionadas pelo mito do amor romântico e pela ideia de que só é possível haver felicidade se existir um grande amor. (...) Não importa muito se a relação amorosa é limitadora ou tediosa. Qualquer coisa é melhor do que ficar sozinha. Fundamental é ter um homem ao lado, o resto se constrói – ou se inventa. Busca-se, portanto, desesperadamente, o amor. Acredita-se tanto nisso que sua ausência abala profundamente a auto-estima de uma pessoa e faz com que se sinta desvalorizada." (p. 91).
Esse amor não é construído sobre a realidade e sim em torno da projeção e da idealização sobre a imagem, por isso ele não resiste à intimidade.
Como a projeção e a idealização se manifestam na relação
O outro não é percebido de forma clara e real, mas sim de forma distorcida da realidade. Dessa forma, ama-se a projeção, a idealização que foi feita do outro e não o outro realmente.
Em relações mais longas, para corresponder a idealização, o outro deve evitar intimidades reais, não expondo sentimentos e pensamentos mais íntimos e não se aproximando muito fisicamente, o que é complicado quando tem maior convivência, pois a mesma evidencia as características de personalidade da pessoa, diminuindo a idealização.
Assim, as projeções, que são partes desconhecidas de si mesmo que sempre foram vividas através do outro, ficam abaladas pela realidade. A maternidade, o durar para sempre e o tornar-se inteiro são associados ao casamento, tendo sensação de completude, de preenchimento de um vazio.
Johnson (1997) complementa que “o amor romântico é o maior sistema energético dentro da psiquê ocidental. Na nossa cultura, é "(...) a arena em que homens e mulheres tentam conseguir transcendência, plenitude, êxtase e sentido para a vida.” (p. 12)
No Ocidente, acredita-se que esta é a única forma de amor que pode gerar relacionamentos verdadeiros e casamentos, pois este é o amor “de verdade”.
Não é necessário apenas amar alguém e sim estar apaixonado, pois, quando isso acontece, a pessoa se sente completa e parece ter encontrado o sentido da vida, mas exige inconscientemente que o outro faça com que esse sentimento de êxtase se mantenha. Apesar dessas sensações boas, a pessoa passa bastante tempo com sentimentos de solidão e frustração, pois há uma sensação de incapacidade em construir relacionamentos afetuosos, baseados em compromissos.
Quando a magia da paixão acaba, há o desencantamento, em que percebemos que as projeções que fizemos são distintas da realidade. Normalmente, culpa-se o outro pelo fracasso e não se imagina que talvez suas próprias expectativas e exigências devam ser revistas.
Para Lins (2007), o amor romântico é um conjunto de ideais, crenças, expectativas e atitudes, que determina como deve ser o relacionamento com outra pessoa e fez com que o casamento virasse o meio para a realização das necessidades afetivas. Ele causa êxtase e agonia, fazendo com que a vida fique emocionante.
Para isso, a pessoa exige coisas impossíveis do relacionamento, já que, inconscientemente, há a crença de que o outro tem a obrigação de fazê-lo feliz constantemente e de tornar a sua vida significativa e encantadora.
Com a crença de que este amor é o verdadeiro, muitas pessoas deixam de experimentar relações amorosas autênticas por conta disso, gerando infelicidade e frustração. Por essa excitação é que, após cada decepção, parte-se para buscar uma nova paixão e viver esse êxtase novamente.
Com o desencantamento e o fim da paixão, o mundo parece triste e vazio, pois se percebe que o outro não é o ser que idealizamos.
Normalmente a pessoa age como se tivesse acontecido uma desgraça e culpabiliza o outro, não pensando nas suas próprias expectativas e exigências impostas ao relacionamento.
Isso ocorre mesmo que o casal continue junto, mas já sem a paixão.
O medo do desamparo é diminuído por um tempo quando o casal está sempre junto, faz atividades juntos e se completa em tudo, mas, para isso acontecer, são feitas concessões de ambas as partes, o que gera muitas frustrações, tornando a relação sufocante.
"Na busca de estabilidade e segurança afetiva qualquer preço é pago para evitar tensões que decorrem de uma vida autônoma. Assim, o desejo de conviver com intimidade se confunde com a ânsia de manter a estabilidade, levando as pessoas a suportar o insuportável.
Tentando justificar sacrifícios ou frustrações pessoais, cria-se um mundo fantástico em que defesas como a negação e a racionalização são acionadas para que se continue a viver uma relação idealizada, distante do que ocorre na vida real." (Lins, 2007, p. 179-180)
Isso faz com que surja hostilidade em relação ao outro, que vai desgastando a relação até se tornar insustentável.
Por conta disso, para manter a idealização do par, frequentemente há sobrecarga na relação, pois não são medidos esforços para esta estabilidade.

Renata Azevedo
@renataazevedo
Renata de Azevedo é psicóloga, especialista em Terapia de Família e Casal, pela UFRJ. Possui formação em Análise Transacional e é coautora do livro “A Arte da Guerra”, da ed. SerMais. Acredita no amor e nos relacionamentos duradouros, saudáveis e felizes. Ama ajudar as pessoas a melhorarem os seus relacionamentos. Antigamente, detestava falar em público, mas hoje é uma das coisas que mais gosta de fazer.
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