O processo de iniciação das crianças nos esportes

A iniciação esportiva é caracterizada como o processo pelo qual uma pessoa decide escolher um esporte, chega à uma escolinha (ou escolas esportivas infantis) e até a pratica competitiva propriamente dita.

Evidentemente este processo implicará em um aprendizado e posterior treinamento progressivo dos participantes, direcionado a melhorar e depois aperfeiçoar os diferentes aspectos orgânicos, funcionais, técnicos e táticos necessários ao ótimo rendimento nos esportes.

Além disto, referimo-nos à competição como um processo natural em que crianças querem experimentar suas novas habilidades e não como uma competição com objetivos apenas mercadológicos.

A iniciação esportiva é um fenômeno mundialmente frequente, principalmente por compreendermos que as crianças são influenciáveis e dependentes dos adultos. Locais em que os esportes são hegemônicos em suas categorias esportivas como o futebol no Brasil, por exemplo, são regulares em iniciar uma grande quantidade de crianças em suas modalidades mais tradicionais.

No entanto, este movimento não clarifica os motivos pessoais das crianças em adentrarem nos esportes.

Este momento inicial tem forte influência sobre a continuidade da prática esportiva pela criança.

As influências do meio externo podem produzir na criança um prazer enorme pela prática esportiva, levando-a à dedicação intensa para alcançar um aperfeiçoamento diário. Porém, se estas mesmas influências forem inversas aos desejos das crianças, pode ocorrer frustração e até aversão ao esporte.

Quando a criança começa a praticar esportes


Para começar a praticar esportes, esta prática deve estar de acordo com os benefícios associados à prática esportiva, resultando positivamente em um desenvolvimento físico, mental e sobretudo social. Realizar atividades físicas e esportes trazem elementos de socialização que possuem conceitos implícitos como valores, conhecimentos, condutas, rituais e atitudes personalizadas do grupo social.

Por esta razão, o esporte configura-se não somente como a prática, mas sim, como a formação do indivíduo em si. Portanto, para que uma criança permaneça no esporte escolhido, ela precisará ter motivações que a estimulem para tal e que sejam congruentes aos seus desejos.

Geralmente as crianças praticam esportes primeiramente pela diversão e depois outros motivos podem ser apontados como: fazer algo em que são boas, melhorar suas habilidades, realizar uma atividade que as deixam alegres, saúde, liberação de energia, fazer exercícios, competir e fazer amizades ou manter as que possui.

Os estímulos que citei acima estão de acordo com as necessidades de desenvolvimento infanto-juvenil, diferentemente de esportes de alto rendimento que exigem esforços significativos.

A carreira esportiva de um atleta passa por diversas fases – incluindo captação e seleção, longos períodos de formação envolvendo treinamento e duras competições, socialização no meio esportivo – e podem alcançar ou não os níveis de alto rendimento esportivo, podendo por fim encerrar o ciclo de treinos sistemáticos.

Assim, a prática de esportes de alto rendimento para crianças torna-se improdutivo, podendo causar a desistência das mesmas nas modalidades esportivas.

A entrada das crianças nos esportes é caracterizada como uma forma de compreensão de que aquele que o pratica, tornar-se-á um cidadão adulto. A aventura esportiva é um enriquecimento possivelmente insubstituível, porém, os caminhos que conduzem aos pódiums e as marcas deveriam ser traçados sobre as bases de um patrimônio cultural-esportivo-humanista respeitando a criança com o fim de nunca esquecer que eles crescerão.

Exemplos de crianças prodígio nos esportes precisam ser acompanhados de um apoio psicológico para lidar com as nuances e dificuldades que virão devido ao seu talento, ou seja, mesmo que ela demonstre que está preparada para esportes de alto rendimento na tenra idade, isso não significa necessariamente que ela o suportará por um longo período ou que não o fará com sofrimento psíquico.

Como podemos compreender, ao se aplicar esportes competitivos para crianças, é necessário que não se busque apenas o êxito pelo êxito e sim, uma aplicação voltada as necessidades implícitas, características pessoais e possibilidades em torno das limitações destes participantes.

No esporte infantil deve prevalecer o objetivo de contribuir na formação integral da pessoa humana por meio da atividade esportiva.

Especialização Esportiva Precoce


O próximo conceito a ser compreendido é a especialização esportiva precoce.

Esta atividade esportiva desenvolvida antes da puberdade e caracterizada por uma alta dedicação aos treinamentos (mais de 10 horas semanais) e principalmente por ter uma finalidade eminentemente competitiva. Os efeitos desta carga de treinamento certamente trarão prejuízos físicos e mentais aos seus participantes como a fadiga e estresse.

Este tipo de iniciação precoce nos esportes de alto rendimento com uma grande exigência às crianças gera controvérsia de profissionais.

A maioria dos professores ligados aos esportes entendem que esta iniciação é um atentado contra a criança e mais amplamente contra toda a infância que deveria estar proibido ou no mínimo regulamentado. Isto acontece devido a relativa falta de legislações que controlem as quantidades de horas e os objetivos da intensidade dos treinamentos para estas crianças.

Tais ações compreendem que as crianças precisam de um atendimento personalizado as suas necessidades. É necessário conhecer e respeitar as características das crianças para que elas não se transformem em mini-adultos. Esta ideia reforça que a maioria dos clubes esportivos ou educadores não se atualizam a respeito dos treinamentos diferenciados para as faixas etárias.

Se a criança inicia nos esportes precocemente, ela executa atividades específicas com uma idade inapropriada. Esta prática das habilidades específicas em um determinado esporte, sem a prática de preparação motora, quase sempre traz como consequência o abandono prematuro da prática esportiva.

Este abandono se caracteriza como drop out, e depois de algum tempo em que as necessidades não sejam cumpridas, a criança pode desistir definitivamente da prática.

As etapas de desenvolvimento infantis são de extrema importância para um crescimento saudável até a idade adulta, por isto devemos considerar que a especialização precoce apresenta diversas dificuldades para o pleno desenvolvimento. Os maiores problemas de um treinamento precoce são:

  1. Formação escolar deficiente, devido a grande exigência em acompanhar com êxito a carreira esportiva;
  2. A unilaterização de um desenvolvimento que deveria ser plural;
  3. Reduzida participação em atividades, brincadeiras e jogos do mundo infantil, indispensáveis para o desenvolvimento da personalidade na infância;
  4. Estresse de competição: que se caracteriza por um sentimento de medo e insegurança, causado principalmente por conflitos oriundos de uma prática excessivamente competitiva. A criança, neste caso, tem medo de errar, sente-se insegura e com a autoestima ameaçada;
  5. Saturação esportiva: se manifesta quando a criança apresenta sinais de desânimo e desinteresse;
  6. Lesões que advém principalmente, pela prática em excesso e inadequada para a faixa etária.

A influência dos pais


Ao abordarmos a formação esportiva da criança nos esportes, devemos considerar a maneira como se relacionam com as suas figuras de iniciação esportiva mais influentes: pais e treinadores.

Os primeiros são descritos como os mais importantes da família, mais significativos até do que seus colegas e a própria escola. Por esta importância dada aos pais, a criança estabelece uma relação de dependência e por isto, ela mostra a tendência de seguir suas instruções.

O segundo é aquele responsável pelo ensino e treinamento de habilidades esportivas tão importantes, além do que são figuras que representam a essência e os valores dos esportes.

Estes momentos são decisivos nesta formação pois mostrarão como as crianças sentem confiança em si mesmas ou experimentam um sentimento totalmente contrário de desconfiança tanto em treinamentos quanto em competições. Os pequenos podem vivenciar diferentes realidades competitivas e reagir de formas diferentes devido à fase de vinculação do desenvolvimento psicossocial conhecida como confiança básica versus desconfiança básica.

As diferenças acontecem no modo como elas interpretam o mundo ao seu redor e quando os pais criticam suas ações esportivas elas certamente terão um desempenho abaixo do esperado e o inverso também ocorrerá, caso mostrem previsibilidade e incentivo em sua prática.

O modo como pais reagem aos primeiros fracassos nas etapas evolutivas da criança parece produzir maior ou menor confiança e autoestima e, mais tarde, pode refletir na sua conduta nas competições. Podemos ver diferenças entre crianças confiantes e não confiantes pela sensibilidade por situações frustrantes do que crianças que sofrem menos impacto por uma derrota.

Outros impactos na personalidade podem ser vistos na escolha das modalidades esportivas por parte dos pais.

Alguns pais impõem fortemente a participação da criança nos programas esportivos, muitas vezes colocam a criança em uma escola e não a informam sobre suas atividades, apenas informam o horário que deverão participar. Esta atitude está pautada no momento em que os pais têm afazeres profissionais ou pessoais que impediriam o cuidado da criança naquele determinado horário.

Esta criança muitas vezes mostra desmotivação para continuar no esporte já que não fez a escolha pela mesma.

Este é uma das situações mais conflituosas para as crianças que os Educadores Físicos presenciam em suas atuações. A diferença em tamanho e a falta de habilidade, poderá determinar estímulos negativos (rejeições) por parte de seus colegas, gerando redução de autoestima e de motivação para persistir na atividade.

Esta representação nos faz indagar se a criança mostra estrutura mental para lidar com essa pressão.

Um ponto de convergência da influência que pais e treinadores exercem nas crianças é o seu desejo de ter praticado determinadas modalidades esportivas e por isto projetam seus sentimentos nos praticantes mirins. Estes sentimentos podem até provocar a excelência de rendimentos esportivos, porém, ao atingir tal marca, algumas delas podem mostrar desmotivação, tristeza e depressão que contribuem para o abandono precoce das atividades esportivas.

Isto se explica pois elas são diferentes qualitativamente dos adultos e mostram expectativas e necessidades distintas a respeito dos esportes.

Por estas razões citadas anteriormente, é comum encontrarmos casos de discordância entre pais e treinadores. Alguns pais acreditam que sabem de tudo sobre o esporte que seu filho pratica e vários deles julgam e criticam abertamente o treinador de seus filhos, em geral, quando sua equipe é derrotada. Se a equipe ganha, eles exaltam as orientações que deram aos filhos e novamente critica o técnico quando o mesmo não o escala desde o início do jogo.

A repulsa de técnicos frente aos comentários negativos de pais em relação ao seu trabalho dificulta a comunicação e dificultam encontrar os pontos de necessidades das crianças que praticam o esporte.

O papel do treinador


A outra figura de destaque apontada neste artigo é a do treinador que convive com estas crianças e assume responsabilidades do clube esportivo. Uma prática comum aos treinadores do esporte infantil é de criticar de maneira dura a criança que comete um erro técnico ou tático durante o treinamento ou competição.

Outras ações do treinador como não dar atenção quando ela necessita de ajuda, não permitir que a criança integre a equipe no treino ou competição, não reconhecer o seu esforço e mostrar que não valoriza a criança com menor habilidade, também configuram fontes de estresse.

Geralmente os conflitos com treinadores acontecem por falhas e derrotas individuais entre os membros da equipe.

Neste momento o treinador deveria ser aquela pessoa com equilíbrio emocional para providenciar apoio aos seus atletas derrotados.

Porém, vários perdem o equilíbrio e agridem verbalmente seus comandados e por vezes, o árbitro. Esta postura pode provocar baixa autoestima e depressão nas crianças e, para que isto seja evitado, a conduta do treinador deve ser de apoio às crianças e as correções dos erros precisam ser abordadas no próximo treinamento.

Compreender as influências para estabelecer pontes


Como resposta a esta pressão desenvolvida ao longo da prática esportiva da criança, ela poderá sofrer consequências negativas em sua personalidade. A pressão por competições e treinos de excelência determinam níveis preocupantes de estresse.

Este estresse emerge quando a criança mostra o resultado de um desequilíbrio advindo de uma percepção da própria criança por seu nível de aptidão e as altas exigências ambientais. O estresse competitivo prejudica funções importantes do ego como afeto, orientação, senso-percepção e área motora.

Este é o efeito de uma importância excessiva dada as competições principalmente por parte dos adultos vinculados a esta criança. É necessário rever estes modelos de uma forma em que os interesses mercadológicos não sobreponham os interesses da criança.

Evidentemente, as situações descritas exigem uma avaliação maior das complexidades envolvidas com a entrada das crianças em esportes, o texto não pretende apontar somente a responsabilidade de pais e treinadores e sim, mostrar como estas influências impactam sobre os pequenos.

Portanto, é necessário apontar estas questões aos envolvidos e desenvolver cada vez mais pontes de comunicação eficazes e de acordo com os interesses dos mesmos.

Um exemplo claro disto está na importância da participação dos pais na vida desta criança no contexto esportivo. Os treinadores podem aproveitar este movimento a favor de sua abordagem enquanto educadores. Uma comunicação eficaz se dá no espaço em que os pais compreendem as funções do treinador enquanto formadores de seus filhos.

Estes pais podem enxergar os treinadores como modificadores sociais e que os auxiliam na educação em espaços fora do ambiente esportivo como na escola ou em casa. Porém, nem sempre essa separação fica evidente para alguns pais.

O psicólogo do esporte atua diante deste cenário de diversas maneiras, compreendendo que pode gerar autonomia para os envolvidos, desenvolvimento da autoestima, transmissão do conhecimento e buscar o desenvolvimento da criança através do esporte numa compreensão de atividades que as façam conectar-se ao ato de ser criança.

Atua-se então de forma a ser um mediador desta conjunção entre criança, treinador e pais.

Com os treinadores, o psicólogo do esporte pode trabalhar de forma interdisciplinar podendo inclusive sugerir atividades em conjunto para que a criança aproveite da melhor forma possível o treinamento.

Com os pais, poderá esclarecer dúvidas em relação ao desenvolvimento infantil e procurar as motivações para que insistam em uma atividade de especialização precoce e com a criança, proporcionar cada vez mais uma abertura na comunicação de suas necessidades proporcionando autonomia e autoconhecimento.

Portanto, se fôssemos elencar maneiras eficazes de lidar com estas atuações podemos citar: auxílio no planejamento de aulas juntamente com treinadores para proporcionar aos pequenos momentos lúdicos; palestras informativas para pais afim de elucidar todos os benefícios do esporte que não sejam apenas o de vencer competições; e seminários constantes com a equipe multidisciplinar a respeito de casos específicos de participantes.

Porém, antes de responder a pergunta sobre o como podemos atuar nesta tríade é preciso considerar os fatores da iniciação esportiva para que possamos iniciar uma intervenção eficaz.

Considerar fatores ambientais como tempo de permanência dos pais nos treinamentos, metodologia de trabalho de treinadores e história institucional são decisivos em uma aplicação eficaz dos conceitos de desenvolvimento.

Certamente que estes contextos podem estar desalinhados com a necessidade real de desenvolvimento infantil nos esportes pois muitas vezes a competição pode se tornar um ponto de objetivo das pessoas que circundam a criança. Por isso, temos que mostrar paulatinamente que o resultado esportivo não reflete o resultado de crianças que se tornarão adultos melhores e, quem sabe, excelentes atletas.

Referências

ALMEIDA, Luiz Tadeu Paes de. Iniciação Esportiva na escola – a aprendizagem dos esportes coletivos. Disponível em: http://www.boletimef.org.br. Acesso em: 25 de outubro de 2016

BECKER JÚNIOR, Benno. Psicologia Aplicada à Criança no Esporte. 1 ed. Novo Hamburgo : FEEVALE, 2000

COZAC, João Ricardo Lebert. Psicologia do esporte: Atleta e ser humano em ação. 1 ed. Roca. São Paulo, 2013

MENDES RAMOS, Adamilton.A iniciação esportiva e a especialização precoce  á luz da teoria da complexidade – Notas Introdutórias. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fef/article/view/1786/3339. Acesso em 25 de outubro de 2016

Ministério do Esporte. Diagnóstico Nacional do Esporte. Disponível em: http://www.esporte.gov.br/diesporte/2.html. Acesso em: 02/11/2016

POMBO MENEZES, Rafael. Especialização Esportiva Precoce e o Ensino dos Jogos Coletivos de Invasão. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/40200 Acesso em 25 de outubro de 2016

SAMULSKI, Dietmar Martin. Psicologia do Esporte: Conceitos e Perspectivas. 2 ed. Manole. São Paulo, 2009

VAN RAALTE, Judy L. Psicologia do Esporte. 2 ed. Santos Editora.São Paulo : Santos, 2011

VERARDI, Carlos Eduardo Lopes. Iniciação Esportiva: A influência de pais, professores e técnicos. Disponível em: https://revista.eefd.ufrj.br/EEFD/article/download/75/44 Acesso em 25 de outubro de 2016

WEINBERG, Robert S. Fundamentos da psicologia do esporte e do exercício. 4 ed. Artmed. Porto Alegre, 2008

Autor Eduardo Souza

Eduardo Souza

@eduardosouza

Psicólogo e Coach de Alta Performance da Seleção Brasileira de Parataewokondo (SBPTKD). Palestrante e idealizador de cursos e workshops pela Academia do Psicólogo. Psicólogo do Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural através do Esporte (Karatê-Do e Taewokondo). Membro do Núcleo de Pesquisa do Instituto Olga Kos. Psicólogo e Coach da Differenza Serviços em Psicologia. Comentarista do Programa Rock Esporte pela Rádio Conectados Web Especializando em Docência das Ciências do Esporte pela Universidade Cândido Mendes.

Oops... Faça login para continuar lendo



Interações
Comentários 0 0