O cérebro e sua fiel escudeira, a Reserva Cognitiva

O cérebro tem particularidades que o próprio cérebro desconhece.

Parafraseando Pascal, resolvi introduzir o texto sobre o tema de Reserva Cognitiva pontuando sobre as incertezas de um funcionamento cerebral. Incertezas porque não temos uma equação tão direta quanto gostaríamos: lesão de tamanho X gera um impacto cognitivo/comportamental Y, com 100% de certeza!

Não é bem assim...

Essa regra não existe. Não com 100% de certeza.

Se fosse fácil prever que um comprometimento de determinado tipo ou tamanho resultaria em um déficit específico de determinada intensidade, seria fácil fazer prognósticos, fossem eles bons ou ruins. Quem trabalha na área e atende casos relacionados a neurologia sabe bem que essa regra falha.

Temos pacientes que chegam com lesões extensas e poucos déficits, e em contrapartida, pacientes que chegam com lesões pequenas, porém com déficits consideráveis. Ao que é que podemos atribuir essas diferenças?

Um pouco de história:

Na década de 90, estudando a epidemiologia das doenças neurodegenerativas, em especial da Demência por Doença de Alzheimer, o professor e pesquisador Yaakov Stern da Universidade de Columbia (EUA), observou que entre um grande grupo de idosos haviam aqueles que desenvolviam sinais clínicos de uma demência, enquanto que outros não (Stern, 2002).

Diante desse fato, ele voltou seu foco para compreender o que seriam fatores que contariam a favor daqueles que não desenvolviam um quadro neurodegenerativo. Entre os fatores, o com maior peso explicativo foi anos de escolaridade. Stern pontuou nessa época que maior escolaridade agiria como fator protetor ao processo de envelhecimento.

Daí em diante, surgiu o conceito de reserva cognitiva.

Conceito Hipotético


Stern trabalha com o conceito de reserva cognitiva como sendo hipotético apesar de duas décadas acumulando evidências a favor.

A reserva cognitiva é um moderador da relação entre estrutura/funcionamento cerebral e a manifestação clinica (cognitiva/comportamental) (Steffener & Stern, 2012). Ser moderador implica que a equação entre como funciona a estrutura e o produto cognitivo que dela vemos, será influenciado pela existência de uma reserva cognitiva maior ou menor.

Na prática, como funciona?

Se pegarmos o exemplo que dei acima sobre lesões pequenas com grandes déficits e lesões grandes com déficits pequenos, a reserva seria um ponto de explicação.

  • O paciente que tem uma reserva cognitiva grande seria capaz de lidar com maiores lesões cerebrais sem que isso resulte em muitos impactos cognitivos e funcionais.
  • Já o paciente com pequena reserva cognitiva apresentaria déficits perceptíveis mesmo diante de lesões muito pequenas.
Na prática, a reserva atua aumentando ou diminuindo a relação direta entre estrutura e função que é tão importante na Neuropsicologia. E isso ocorre nos diferentes quadros clínicos que já foram avaliados para esse ponto.

Stern e seu grupo verificaram que dois pacientes basicamente similares na quantidade de neurodegeneração (exemplo: quantidade de atrofia de hipocampo) não manifestam a mesma quantidade de queixas e déficits de memória episódica anterógrada se tiverem reservas cognitivas diferentes.

Aquele paciente com reserva cognitiva maior tem mais chances de ter mais atrofia de hipocampo que o com baixa reserva, para que manifeste a mesma quantidade de declínio de memória episódica (Stern, 2012).

Em transtornos psiquiátricos, maior reserva atua como fator protetor para crises e ciclagens de humor, reduzindo a ocorrência dessas.

Interessante, não?

A reserva é como uma capa protetora, que corresponde ao quanto seu cérebro é capaz de tolerar de dano antes de sinalizar que há algo errado acontecendo. Podemos pensar em uma analogia que eu gosto muito: o quanto nossos músculos são capazes de tolerar de exercício físico antes de começarem a arder/tremer/perder a força.

Quem tem bom preparo possivelmente tolera maiores pesos ou exercícios antes de chegarem a exaustão muscular, certo?

O mesmo acontece com o cérebro!

Antes dele chegar a uma exaustão cognitiva, emocional ou comportamental ele possivelmente vem tolerando alterações em seu funcionamento usual.

Nesse momento imagino que estejam com duas perguntas em mente:

Como é que eu sei que alguém tem boa reserva? Como é que podemos construir uma boa reserva?

Proxies de Reserva Cognitiva


Só sabemos com certeza que alguém tem boa reserva caso ela tenha algum grau de comprometimento cerebral não manifestado na intensidade “esperada”. No entanto, temos medidas aproximadas (chamadas de proxies) de reserva. (Lembrem-se que sendo um construto ela não pode ser avaliada diretamente).

Entre os proxies já identificamos nesses anos de estudos alguns marcadores importantes, tais como: escolaridade, nível ocupacional, inteligência e em alguns estudos, atividades de lazer.

Numa lógica, pessoas com maior nível educacional, cargos ocupacionais cognitivamente estimulantes, com inteligência de média a superior e com boas atividades de lazer tendem a ser pessoas com melhor reserva cognitiva (Stern, 2009).

De todos os proxies a escolarização é o principal deles, com maior embasamento na literatura.

Antes de responder a pergunta de como construir uma boa reserva, vamos falar um pouco sobre o impacto clínico da reserva cognitiva. O que vocês acham que pode acontecer?

Para quem pensou no cenário da avaliação neuropsicológica: Sim! Pessoas com boa reserva costumam passar ilesos na avaliação neuropsicológica, mesmo que apresentem queixas e alguns poucos indícios de um funcionamento cognitivo/cerebral distinto do normalmente apresentado.

Nesses casos, é muito importante estarmos atentos clinicamente para não cometermos erros que afetem o prognóstico dos nossos clientes.

Os outros pontos clínicos e práticos da reserva cognitiva na nossa prática serão abordados no vídeo.

Sem delongas vamos então a parte que todos que ouvem falar sobre reserva querem saber: como é que se constrói uma boa reserva?

Não temos uma fórmula mágica, tampouco as indicações que temos hoje são desconhecidas da população como um todo.

Os estudos sobre construção de reserva ainda são muitos novos, e sem estudos de seguimento o suficiente para darmos uma receita. De toda forma, pensando nos proxies de reserva podemos pensar no que a constitui e, consequentemente, como estimulá-la, não é?

Aprender coisas novas é uma possibilidade, desde que o aprendizado seja uma nova aquisição, e manter-se cognitivamente estimulado durante sua profissão é também uma possibilidade. No entanto, não paramos por ai: os velhos amigos do cérebro são também importantes: exercício físico, uma boa alimentação e lazer!

Tudo o que podemos fazer por nós como um todo, são sempre benéficas para o cérebro e consequentemente para o seu funcionamento.

Para aqueles que esperavam uma fórmula mágica, desculpem-me, mas as recompensas vem através do esforço. Mãos a obra na construção da reserva! A Academia do Psicólogo é um excelente espaço, cheio de conhecimentos esperando para serem aprendidos. ;)

Referências

Steffener, J., & Stern, Y. (2012). Exploring the neural basis of cognitive reserve in aging. Biochimica et Biophysica Acta - Molecular Basis of Disease. https://doi.org/10.1016/j.bbadis.2011.09.012

Stern, Y. (2002). What is cognitive reserve? Theory and research application of the reserve concept. Journal of the International Neuropsychological Society?: JINS, 8(3), 448–60. https://doi.org/10.1017/S1355617702813248

Stern, Y. (2009). Cognitive reserve. Neuropsychologia. https://doi.org/10.1016/j.neuropsychologia.2009.03.004

Stern, Y. (2012). Cognitive reserve in ageing and Alzheimer’s disease. The Lancet Neurology. https://doi.org/10.1016/S1474-4422(12)70191-6

Autor Laiss Bertola

Laiss Bertola

@laissbertola

Laiss Bertola é neuropsicóloga clinica, supervisora e professora. Doutora pela UFMG e pesquisadora da relação entre o cérebro e a cognição/comportamento. É apaixonada pelo cérebro e pela neuropsicologia, e busca através de suas ações profissionais melhorar a atuação do profissional interessado nessa área através do eixo fundamental teoria-prática.

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