Não basta ver, é preciso perceber

Quando pensei no tema central percepção para o conteúdo desse mês a ideia era abordar um dos domínios cognitivos mais clássicos na história do estudo neuropsicológico. Justamente por isso, temos uma vasta imensidão de possibilidades dentro desse tema.

Vamos definir percepção para começar:


Percepção é o uso e processamento da informação sensorial pelo cérebro. Isso significa que cada órgão sensorial terá sua informação enviada ao cérebro para que seja compreendida e utilizada.

Dessa forma, temos cinco vias sensoriais: visual, auditiva, gustativa, olfatória e tátil, e cada uma delas possui suas regiões cerebrais responsáveis por iniciar o processamento da informação que chega.

As áreas corticais responsáveis pelo processamento perceptual são as primeiras a serem maturadas no nosso desenvolvimento, afinal, é através da entrada dessas informações que passa a ser possível nossa interação com o meio de forma cada vez mais sofisticada.

Seria inviável abordar todas as cinco nesse momento (prometo abordar as demais adiante no canal), então optei pela visual. Motivo? É o sistema de maior magnitude em uso de estruturas cerebrais na percepção, e é nosso sistema de escolha primária como humanos.

Preferimos ver para crer


Para simplificar um pouco, iniciarei o trajeto da percepção visual diretamente no córtex occipital (para spoilers sobre o que acontece antes leia o capítulo indicado ao final do texto!)

A informação ao atingir o córtex visual primário (no lobo occipital), iniciará sua interpretação. O primeiro processo é o reconhecimento de que existem informações visuais, e portanto, lesões nesse córtex resultam em cegueira cortical. Um quadro clássico decorrente da inexistência de neurônios capazes de receber e iniciar o processamento da informação vinda do olhos.

Quando temos a preservação das vias subcorticais que comunicam com os colículos superiores é possível existir um quadro chamado de visão cega, onde o paciente alega não ter mais processamento visual, no entanto possui reflexos acurados para o desvio de objetos, reconhecimento de luz, e escolhas de respostas visuais.

Essa situação é possível diante da perda de consciência sobre o processamento visual, ou seja, ele tem resquícios de processamento visual, no entanto, a via utilizada não realiza uma comunicação clara com o sistema que torna a percepção consciente.

Dessa forma, o paciente de fato tem a certeza de que não possui mais processamento visual, ou seja, que não pode mais enxergar (Atenção aqui: perda da visão por questões sensoriais é diferente! São os casos de déficit visual que normalmente encontramos na população. Todos os quadros que listei e listarei são adquiridos).

A medida que a informação segue no lobo occipital ela passa a analisar aspectos de cor, forma e movimento. Nesse momento é possível que lesões adquiridas resultem em quadros como:

  • acinetopsia (déficit seletivo na percepção do movimento),
  • acromatopsia (perda da capacidade de ver em cores),
  • ou a incapacidade de perceber profundidade.

No entanto, os quadros mais clássicos envolvendo o domínio de percepção são as agnosias.

São quadros que tem como base o comprometimento na integração perceptual que afetam o reconhecimento da informação processada. As agnosias estão ligadas a déficit perceptual de qualquer modalidade sensorial, ou seja, podem ser visuais, auditivas, táteis, gustativas ou olfatórias.

Mantendo a linha escolhida para o nosso conteúdo, veremos:

As agnosias relacionadas aos estímulos visuais


As agnosias visuais envolvem a incapacidade de reconhecer (acessar o conhecimento possuído sobre) um determinado item que teve seu processamento perceptivo através da via visual.

Simplificando, são pacientes que olham para objetos, sabem que estão vendo algo, porém não sabem dizer o que é.

Essas agnosias podem ser classificadas em duas: as aperceptivas e as associativas.

  • A aperceptiva envolve prejuízo na integração de componentes do estímulo, ou seja, não ocorre uma integração dos elementos de forma, cor e profundidade com a qualidade necessária para o acesso ao conhecimento.
  • A associativa, apesar de integrar os componentes do estímulo, apresenta falha no acesso ao conhecimento.

Um fato curioso sobre as agnosias, e crucial para a clínica, é que normalmente esses pacientes, se possuírem déficit perceptual de uma única via de estimulação sensorial, são capazes de acessar o conhecimento do item/objeto através de outra estimulação sensorial.

Exemplo: vendo um lápis um paciente com agnosia visual responderá que não sabe o que é, mas se tiver a oportunidade de pegar no lápis, responderá que é um lápis.


Esse fato curioso impede erros de caracterização cognitiva, um assunto que tratarei no vídeo.

Outro quadro de agnosia, envolve a dificuldade de reconhecimento de faces, mesmo as mais familiares, chamado de prosopagnosia.

Nessa condição clínica os pacientes reconhecem pessoas através de seu andar, roupas, voz e cheiro, por exemplo. Um estudo de caso clássico e de recomendada leitura foi descrito pelo neurocientista Oliver Sacks intitulado “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” (pensando bem não só desse, afinal ele tem tantos casos interessantes descritos!!).

Um ponto neuroanatômico interessante é que essas agnosias são relacionadas a uma das:

Vias de distribuição da informação


Uma vez que as informações são processadas no lobo occipital elas seguem por duas vias (temos estudos mais recentes mostrando que seriam quatro, mas vou começar com as duas mais usadas para simplificar, e abordarei as outras duas no final).

A via ventral, também chamada de via do “o que”, envolvida no acesso semântico e portanto relacionada ao reconhecimento do estímulo, e a via dorsal, também chamada de vida do “onde”, envolvida na localização espacial do estímulo e consequente influência nas escolhas motoras frente a esse estímulo.

A via do “o que” realiza a etapa final de acesso semântico permitindo que a integração de informações sobre cor, forma, movimento e profundidade ganhe uma definição e conhecimentos. É quando essas informações, até então abstratas ganham um nome e demais conhecimentos associados, seja uma borboleta ou uma banana. Falhas nessa via estão associadas as agnosias relatadas acima.

Outro ponto importante de ressaltar é que a memória semântica permanece intacta nessas circunstâncias. O conhecimento está preservado e é por isso que é possível o acesso a esse conhecimento através de outra via perceptual (auditiva ou tátil, por exemplo).

A via do “onde” realiza a integração com o sistema visioespacial e motor, proporcionando nossa habilidade de, através da estimulação visual, desviar de objetos no meio, saber a movimentação necessária para cada estímulo, entre outras funções. É devido a essa via que ao vermos uma fechadura sabemos exatamente a direção que a chave deve ser inserida, sem serem necessárias inúmeras tentativas.

As duas outras vias presentes em estudos mais recentes são distribuídas em mais uma via ventral, chamada de “para o que”, relacionada exclusivamente ao conteúdo de utilização do objeto visto, e mais uma via dorsal, chamada de “como?”, relacionada a antecipação de programação motora do uso do objeto.

Um exemplo da via do “como” seriam os movimentos manuais quando você antecipa pegar numa caneca ou empurrar uma porta (fazemos movimentos diferentes e já sabemos que eles requerem escolhas motoras antecipadamente diferentes).

Bom, apesar de percepção ser um domínio clássico, com síndromes clássicas na nossa literatura, o desafio de sua avaliação ainda é presente na clínica e é sobre isso que falarei no vídeo. Em especial como suspeitar de déficits perceptuais e dicas para separarmos eles de outros domínios.

Até lá!

Sugestão de Leitura:

Sacks, O. W. (1997). 0 homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras historias clinicas / Oliver Sacks tradução Laura. Teixeira Motta — São Paulo Companhia das Letras.

Bear, M., Connors, B., & Paradiso, M. (2017). Neurociências – Desvendando o Sistema Nervoso. Artmed: Porto Alegre, 4ª Ed. – Capítulos 09 e 10.

Referências:

Kalénine, S., Buxbaum, L. J., & Coslett, H. B. (2010). Critical brain regions for action recognition: lesion symptom mapping in left hemisphere stroke. Brain, 133(11), 3269–3280. http://doi.org/10.1093/brain/awq210

Bear, M., Connors, B., & Paradiso, M. (2017). Neurociências – Desvendando o Sistema Nervoso. Artmed: Porto Alegre, 4ª Ed.

Autor Laiss Bertola

Laiss Bertola

@laissbertola

Laiss Bertola é neuropsicóloga clinica, supervisora e professora. Doutora pela UFMG e pesquisadora da relação entre o cérebro e a cognição/comportamento. É apaixonada pelo cérebro e pela neuropsicologia, e busca através de suas ações profissionais melhorar a atuação do profissional interessado nessa área através do eixo fundamental teoria-prática.

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