Memória Semântica, a enciclopédia a seu dispor

Fazer um texto sobre memória semântica é algo particularmente ainda mais prazeroso. Na Neuropsicologia nós amamos cognição, mas sempre temos um domínio cognitivo pelo qual temos um afeto maior. Simplesmente porque nos fascinamos pelo que fazem, como funcionam e como impactam nossas vidas.

Pois é, para mim esse domínio é a Memória Semântica. Quem me conhece ou já assistiu minhas aulas sabe bem.

Curiosa que sou desde criança, sempre admirei a capacidade de retermos conhecimentos, aprendizados, fazermos conexões e gerarmos novos saberes. Se lembrarmos da organização do sistema de memória, a memória semântica é uma memória de longo prazo declarativa, certo? Caso ainda tenha dúvidas, acesse o texto “Memória, um arquivo de informações”.

Definição


A memória semântica é por definição o que chamamos de nosso conhecimento conceitual.

Ou seja, nela estão armazenados conhecimentos e informações que independem do tempo, do espaço e do evento em que a armazenamos (Tulving, 1972). Nessa memória estão guardadas as definições de palavras, os nomes, os conhecimentos que temos acerca das coisas mais simples até as mais complexas, e é influenciada pela cultura em que estamos inseridos.

É por isso que eu costumo fazer uma analogia entre ela e uma enciclopédia. Ou para ser mais moderna: ela seria o nosso Google particular. É nela que nós guardamos desde o que significa o Carnaval, até os conceitos muito específicos e abstratos vindos da Psicologia.

O interessante dessa memória é que ela é construída com base no que chamamos de diferenciação progressiva (McClelland & Rogers, 2003). Aprendemos uma informação mais geral que pode ir cada vez mais abrindo ramos para conhecimentos mais específicos.

Eu gosto do exemplo da própria Psicologia.

Eu, por exemplo, entrei no curso achando que ia estudar Psicologia. Mal sabia eu que seriam PsicologiaS. Dentro de cada grande grupo teórico da Psicologia, temos ainda correntes mais específicas, e dessas correntes temos teóricos que propõe conceitos específicos e assim nosso conhecimento foi cada vez mais se diferenciando progressivamente.

O modelo de memória é um outro bom exemplo. Para leigos existe memória e ponto. Para nós existem memóriaS.

E se olharmos o modelo do Tulving ele vai se diferenciando progressivamente entre longo e curto prazo, declarativa ou não declarativa e assim vai.

Usamos também da nossa habilidade de realizar correlações ilusórias ao construir um conhecimento (McClelland & Rogers, 2003). Quem nunca fez relações entre um novo conhecimento e um que já tinha armazenado? Aquele típico momento do: AH!! Então isso se parece com aquilo, certo?

As vezes sim, as vezes não. E é por isso que existe o termo ilusórias no nome. Porque para simplificar a aquisição de conhecimentos novos (que é desgastante como veremos), nosso cérebro tenta adicionar um atalho mais rápido para consolidar uma nova memória. As vezes isso é o ideal, as vezes isso nos prega peças.

Por exemplo, é possível que em um primeiro momento um morcego tenha sido classificado como pertencente ao grupo das aves, afinal ele voa, não é mesmo? Mas depois foi preciso entender que essa correlação inicial “morcego=aves” não era real, pois o morcego é um mamífero.

O agrupamento de informações e classes de conhecimentos, chamada de categorização também é fundamental para o funcionamento e uso da memória semântica. Não só porque permite uma aquisição de conhecimento mais rápida, mas também porque potencializa inferências e economiza espaço e energia cerebral (e nosso cérebro preza muito isso!).

Áreas Cerebrais


Representação neuroanatômica simplificada do modelo distribuído-convergente. Em verde as regiões de processamento específico (distribuído) e em azul o Lobo Temporal Anterior (convergente).

Essa memória se organiza em uma rede complexa de ativações cerebrais que dependem em parte de regiões que processam tipos específicos de informação (tais como as regiões envolvidas na percepção visual, auditiva, etc) e também de regiões consideradas generalistas, ou seja, que são utilizadas para reunir as informações específicas e gerar um bloco único de informações (Patterson, Nestor, & Rogers, 2007).

Exemplo: Pense em um cachorro. O que você sabe sobre ele?

Acredito que a maioria terá dito que é um animal (agrupamento maior de informações), que late (percepção auditiva), tem pelo e quatro patas (percepção visual).

Acertei?

Bom, essas informações semânticas que armazenamos recrutam o máximo de elementos que temos a respeito daquele estímulo para construirmos o maior conhecimento possível.

Essa organização semântica é chamada de distribuída-convergente (Lambon Ralph, Jefferies, Patterson, & Rogers, 2016).

O que isso quer dizer Laiss?

  • O distribuída se refere ao uso das regiões cerebrais envolvidas em processamento cognitivo específico, como por exemplo ativar regiões do processamento perceptual visual para acessar a informação de que cachorro tem pelo.
  • Já o convergente se refere a presença de uma área cerebral que reúne essas informações distribuídas e nos permite extrair um conhecimento mais amplo e global (no caso, que cachorro preenche os critérios de ser um animal).

Já dissemos que a parte distribuída está espalhada em nosso cérebro. E a convergente?

A convergente se localiza no Lobo Temporal Anterior (LTA). Estudos de neuroimagem e quadros clínicos nos mostram que essa região, se lesionada ou degenerada, resulta na perda de conhecimentos, definições de palavras entre outro impactos semânticos (Jefferies, 2013).

Funcionamento


Lembram de um segundo modo de classificação das memórias? Aquela referente a rapidez com que elas são formadas e sua maleabilidade para alteração? Então, muito diferente do que vimos com a episódica (que é de rápida codificação e alta maleabilidade), a semântica é classificada como sendo de lenta codificação e baixa maleabilidade (Henke, 2010).

Isso quer dizer que:

  1. quando vamos registrar um conhecimento atemporal, normalmente, precisamos de múltiplas exposições, ou seja, ver o mesmo conteúdo algumas vezes para que ele possa ser oficialmente codificado;
  2. uma vez codificados essas informações são organizadas em associações rígidas, difíceis de serem alteradas.

Resumindo: para ganharmos um conhecimento novo, é esperado que o vejamos várias vezes para que se consolide em nossa memória semântica. Uma vez consolidado, se precisamos alterá-lo, isso resultará em um esforço importante. Por outro lado, garante a estabilidade daquele conhecimento sem alterações significativas todas as vezes que precisarmos usá-lo.

Bem diferente do que acontece com a episódica não é mesmo? Falaremos mais sobre isso no vídeo.

Desenvolvimento


Interessante notar que assim como a memória episódica e todos os domínios cognitivos, a memória semântica tem uma curva ascendente na infância, um período de estabilidade na vida adulta e enfrenta o declínio no envelhecimento. No entanto, a memória semântica é um domínio classificado como cristalizado, ou seja, mais resistente ao processo de envelhecimento e mais influenciado culturalmente.

Para as crianças o que vemos é um processo de aquisição crescente da memória semântica, criando novos conhecimentos e diferenciando progressivamente os que possuem. É certo que crianças mais novas possuem limitações quanto ao volume de informações que conseguem ser armazenadas e organizadas.

Isso se deve em especial pelo fato de que o Lobo Temporal Anterior (LTA), a área de convergência semântica, é uma região cerebral terciária. Ser uma região cerebral terciária implica que sua maturação cerebral demora mais tempo para ocorrer ao longo do desenvolvimento, e normalmente, atinge seu ápice no fim da adolescência.

Portanto, temos que ter cuidado com o que esperamos e impomos para as crianças.

Essa memória apesar de apresentar uma curva de declínio no envelhecimento, o faz bem mais tarde do que a memória episódica. Enquanto a memória episódica vem declinando lentamente desde a vida adulta intermediária, a memória semântica inicia seu declínio na terceira idade (Nyberg, Lovden, Riklund, Lindenberger, & Backman, 2012).

Isso implica em dois pontos:

  1. é possível manter uma taxa de aprendizagem de novos conhecimentos de forma estável da vida adulta até o início da vida idosa (então não venha me dizer que está velho demais para aprender algo); e
  2. não é comum que idosos se queixem de esquecimentos semânticos, como acontece com os episódicos.

Demência Semântica


A Demência Semântica faz parte de um grupo de demências que afetam os lobos frontais e temporais. Essa demência como o próprio nome diz, é marcada por déficits de memória semântica.

Idosos com essa demência apresentam perda progressiva de seus conhecimentos, e isso reflete em dificuldades de nomear objetos, usar palavras específicas em seus discursos, entender o significado de palavras quando as ouvem ou leem, e dificuldades em manusear objetos do dia-a-dia pois ele não mais encontram seus significados (Hodges & Patterson, 2007).

Idosos com esse quadro clínico em sua manifestação inicial não encontram dificuldades de lembrar de eventos recentes (memória episódica) e exames de imagem revelam estruturas temporais mesiais intactas.

No entanto, apresentam atrofia ou hipoatividade do LTA. Essa atrofia resulta na incapacidade de convergência das informações semânticas, para que sejam organizadas e construída/acessada na forma de um só conhecimento (Hodges & Patterson, 2007).

Para essas pessoas, as vezes resta o conhecimento de que a banana deve ser comida, mas não sabem que sua cor é amarela, e que ela é uma fruta assim como a laranja. Com o avançar do quadro esses déficits se intensificam e resultam em prejuízos funcionais cotidianos claros, como inabilidade em cozinhar, em usar objetos comuns como roupas e utensílios domésticos.

Na prática clínica


Falaremos mais da memória semântica na prática clínica no próximo vídeo, mas porque não antecipar alguns pontos?

Enquanto que a memória episódica merece cuidados desde a sua evocação até a forma que será trabalhada, a memória semântica impacta nossa vida e nossa prática de outra forma:

  • Quais as melhores técnicas de aprendizagem que precisamos ensinar as crianças e adultos? A forma como entendemos a aquisição de conhecimentos influencia a forma como orientamos e propomos intervenções.
  • Precisamos também ter cuidado com conhecimentos rígidos que precisam ser modificados com a evolução dos saberes. As vezes somos pegos em correlações ilusórias e isso nos prejudica, as vezes não correlacionamos ou agrupamos conhecimentos que deveriam estar juntos.
  • Com a enxurrada de informações em redes sociais e sites de notícias, como ficam as qualidades das informações e suas atribuições de fonte? O que o fácil e excessivo acesso a informações tem provocado em nossa memória semântica?
  • Como lidar com os sinais de falhas de memória semântica no nosso dia-a-dia e na nossa profissão.

Espero que até aqui vocês tenham iniciado um registro sobre memória semântica na memória semântica de vocês, e que possamos reforçá-lo no vídeo (é só clicar AQUI para acessar)! Até lá!

Referências

Henke, K. (2010). A model for memory systems based on processing modes rather than consciousness. Nature Reviews. Neuroscience, 11(7), 523–32. https://doi.org/10.1038/nrn2850

Hodges, J. R., & Patterson, K. (2007). Semantic dementia: a unique clinicopathological syndrome. Lancet Neurology. https://doi.org/10.1016/S1474-4422(07)70266-1

Jefferies, E. (2013). The neural basis of semantic cognition: Converging evidence from neuropsychology, neuroimaging and TMS. Cortex. https://doi.org/10.1016/j.cortex.2012.10.008

Lambon Ralph, M. A., Jefferies, E., Patterson, K., & Rogers, T. T. (2016). The neural and computational bases of semantic cognition. Nature Reviews Neuroscience, 1–14. https://doi.org/10.1038/nrn.2016.150

McClelland, J. L., & Rogers, T. T. (2003). The Parallel Distributed Processing Approach to Semantic Cognition. Nature Reviews Neuroscience, 4(4), 310–322. https://doi.org/10.1038/nrn1076

Nyberg, L., Lovden, M., Riklund, K., Lindenberger, U., & Backman, L. (2012). Memory aging and brain maintenance. Trends in Cognitive Sciences. https://doi.org/10.1016/j.tics.2012.04.005

Patterson, K., Nestor, P. J., & Rogers, T. T. (2007). Where do you know what you know? The representation of semantic knowledge in the human brain. Nature Reviews Neuroscience, 8(12), 976–987. https://doi.org/10.1038/nrn2277

Tulving, E. (1972). Episodic and semantic memory. Organization of Memory. https://doi.org/10.1017/S0140525X00047257

Autor Laiss Bertola

Laiss Bertola

@laissbertola

Laiss Bertola é neuropsicóloga clinica, supervisora e professora. Doutora pela UFMG e pesquisadora da relação entre o cérebro e a cognição/comportamento. É apaixonada pelo cérebro e pela neuropsicologia, e busca através de suas ações profissionais melhorar a atuação do profissional interessado nessa área através do eixo fundamental teoria-prática.

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