A velha e boa inteligência

Entre tantas habilidades cognitivas, eu tenho certeza de que hoje eu abordarei a mais polêmica. Polêmica, mas necessária para quem trabalha com psicologia e seus desfechos mais variados.

A ideia do conteúdo desse mês será abordar não só o conceito e as bases neuropsicológicas da inteligência, mas também discutir os diferentes modelos (e acho que aqui reside a polêmica maior).

Usar o termo inteligência no popular normalmente é diferente do que, nós psicólogos, expressamos com o termo de forma técnica.

Então, para começar, o que é inteligência?

De acordo com um consenso é uma capacidade mental geral que envolve, entre outras coisas, a habilidade de raciocinar, resolver problemas, pensar abstratamente, aprender rapidamente e a partir da experiência e ser capaz de usar esse aprendizado (Gottfredson, 1994).

Não é meramente um aprendizado guiado por livros ou pela academia, é a capacidade de fazer sentido e extrair comportamentos que devem ser executados mesmo sem que ocorra instrução formal.

Então, depois dessa definição, quero que tenham em mente a ideia de que a inteligência é uma capacidade muito ampla, presente em praticamente todas nossas atitudes.

Teoria CHC


Vou começar pela teoria mais usada e com maior embasamento científico até o momento. A teoria Cattell-Horn-Carroll (CHC) é também a teoria mais utilizada como embasamento para os testes que avaliam o constructo inteligência. Para quem se lembra das aulas os três nomes que compõe o modelo são de três teóricos da inteligência.

Enquanto a teoria de Cattell-Horn propunha uma distinção entre as habilidades intelectuais cristalizadas e as fluidas, a teoria de Carroll propunha a teoria dos três estratos (uma estrutura hierárquica).

A junção dessas teorias deu origem ao CHC que possui uma base de habilidades cognitivas específicas, e um segundo nível onde algumas dessas habilidades podem ser agrupadas por partilharem similaridades cognitivas maiores, e um terceiro nível que contém o fator geral de inteligência (também conhecido por nós como fator g).

Essa teoria possui inúmeros estudos que comprovam suas propriedades psicométricas (o que para nós, psicólogos tentando medir constructos, é extremamente importante, lembram?).

Ou seja, ao que tudo indica temos uma série de habilidades específicas, mas todas ela partilham algo em comum, e é esse algo em comum que chamamos oficialmente de QI ou inteligência geral.

Atentem-se para o fato de que essa teoria não exclui a importância de habilidades específicas, muito pelo contrário, mas ela ressalta a existência de um fator geral.

Por exemplo, as Escalas Wechsler de Inteligência seguem o modelo CHC e em seus testes é possível ver habilidades específicas, habilidades de segundo nível e o fator geral de inteligência. Basta lembrarmos da teoria e fazer uma bela análise de seus resultados.

Teoria das Inteligências Múltiplas


A segunda teoria será a de Inteligências Múltiplas apresentada por Gardner em 1983. Apesar da definição de inteligência proposta por ele não ser muito diferente daquela que apresentei no início do texto, Gardner optou por não construir uma teoria fatorial ou hierárquica.

Ele também criticava que muito da inteligência geral era atribuído a habilidades linguísticas e lógico-matemáticas que eram aprendidas na escola. Propôs então oito inteligências diferentes, e cogitou a inclusão de mais duas.

No entanto, a teoria de Gardner carece de alguns pontos críticos para nós psicólogos.

  • O primeiro deles é a validade. Os testes destinados a avaliar a teoria de Gardner apresentam sempre baixas propriedades psicométricas, o que no nosso meio implica que o constructo inteligência (mesmo se fossem múltiplas) não está sendo realmente avaliada.
  • O segundo é que as oito inteligências propostas sobrecarregam o sistema fluído cognitivo, o que reduz sua amplitude ao invés de aumentar, como era o desejado por ele.

É interessante notar que a crítica apontada pela literatura não faz com que o uso dessa teoria (em especial no contexto escolar) reduza aqui no Brasil.

O que eu penso sobre isso?

O motivo parecem ser dois: 1) o desconhecimento de que a teoria CHC abarca o nível das habilidades específicas e, 2) o desconforto gerado pela existência de uma habilidade geral intelectual, que para muitos, é visto como uma redução das habilidades possuídas pelo indivíduo (mas esse ponto volta no nº 1).

Teorias de Inteligência Emocional


A base das teorias de inteligência emocional é a observação de que indivíduos reagem e usam suas emoções de maneiras diversas para melhorar sua cognição. Alvo de muitas críticas diante do amplo leque de traços, conceitos e constructos que foram levantados, os autores iniciais da teoria Mayer e Salovey propuseram um modelo de quatro aspectos mais precisos.

No entanto, essa teoria sofre das mesmas críticas propostas a teoria das inteligências múltiplas: psicometria. A mensuração é imprecisa e sua validade também.

Acho importante ressaltar que não quer dizer que não tenhamos habilidades emocionais e cognitivas em correlato, ou que em especial, temos pessoas que possuem melhor uso de suas emoções e reconhecimento dessas em outrem. O ponto crítico está em chamar isso de inteligência.

O termo é (desculpem-me a expressão) marqueteiro e bonito, mas abre brechas para a exigência de que a psicometria desse constructo seja clara.

E eis que essa inteligência emocional se confunde um pouco com traços de personalidade, com pontos próprios da inteligência geral e claro, com habilidades de regulação do sistema emocional, mas todos misturados em uma caldeira, não gera uma só habilidade como prometido.

Atualidades


Há ainda outras teorias despontando, como a teoria de Múltiplos Mecanismos Cognitivos, onde acreditam que algumas habilidades cognitivas contam mais para nosso sucesso no raciocínio do que outras. Ou a teoria de Integração Parieto-Frontal que além de atestar que a inteligência está distribuída no cérebro, em conjunto as habilidades requerem majoritariamente ativações frontais e parietais. Ou ainda a teoria do Processamento Dual que incorpora essa já consolidada teoria cognitiva.

O importante sobre as teorias é que nós profissionais, busquemos sempre utilizar aquela que possui maior respaldo e embasamento científico, principalmente se formos avaliar um constructo.

Com a inteligência não é diferente.

Nesse caso, como eu também não defendo nenhum teórico sem que tenha motivo, eu sugiro que usem a teoria CHC (e sim, se um dia outra se provar muito melhor, eu serei a primeira a dizer: larga a CHC que tem uma muito melhor – afinal o conhecimento vai sendo produzido dia após dia!).

Vou falar no vídeo um pouco do que eu, Laiss, acredito que acontece na prática quando os profissionais se deparam com as teorias que mencionei acima, e acabam recusando a CHC mesmo tendo muito, mas muito mais, evidências a favor dela.

Neurociência


Como já era de se esperar, sim a inteligência sendo um fator cognitivo amplo está distribuída no cérebro, e é isso que garante sua estabilidade ao longo da vida. Interessante né?

E que de fato, como propõe uma nova teoria citada acima, temos uma contribuição especial das conexões parieto-frontais nas diferenças individuais da inteligência.

Também não é de se assustar, que assim como a cor dos olhos e o formato do seu nariz, você também herdou (e muito) da inteligência dos seus pais (agradeça a eles mais tarde, ok?).

A herdabilidade da inteligência chega a 70-80% na vida adulta, e na infância o ambiente parece ser promotor ou atenuador do efeito da genética.

Por exemplo, crianças que nascem em ambientes socioeconomicamente privados acabam expressando muito mais a parte genética da inteligência, do que aquelas que nascem em ambientes estimulantes.

A inteligência tem genes estudados, em especial por apresentar-se reduzida em quadros e síndromes clássicas, como a Síndrome de Down. Bem como temos estudado o efeito do ambiente de forma a promover o melhor meio para sua manifestação e desenvolvimento.

É importante ter em mente que qualquer um de nós adoraria que a inteligência fosse mais flexível e respondesse mais a estimulações do ambiente do que ela faz.

Mas infelizmente nem sempre tudo corresponde ao que queremos.

Quando sabemos que a inteligência é estável ao longo da vida, ou seja, ela é sempre igualmente proporcional ao esperado para cada idade se avaliarmos alguém com 11 anos ou com 70, implica que muitas vezes podemos estimular habilidades específicas, mas nem sempre isso vai refletir na estimativa do constructo geral de alguém.

E que não há nada de errado nisso, ela tem sua base biológica tanto quanto outras características humanas (precisamos perder o medo do bio, e incorporar ele no biopsicossocial de forma concreta).

Por fim, queria com esse conteúdo trazer um pouco de discussão sobre esse tema. Sobre um constructo tão antigo e tão atual na nossa prática profissional. E justamente por estar sempre ai presente é que precisamos saber o melhor dele para proporcionar o melhor para nosso clientes, certo?

Nos vemos no vídeo para falarmos um pouco mais sobre esse uso prático desse conceito. Até lá!

Referências

Deary, I. J. (2014). The Stability of Intelligence From Childhood to Old Age. Current Directions in Psychological Science, 23(4), 239–245.

Deary, I. J., Penke, L., & Johnson, W. (2010). The neuroscience of human intelligence differences. Nature Reviews Neuroscience.

Gottfredson, L. S. (1997). Mainstream science on intelligence: An editorial with 52 signatories, history, and bibliography. Intelligence, 24(1), 13–23.

Kaufman, J. C., Kaufman, S. B., & Plucker, J. a. (2013). Contemporary Theories of Intelligence. The Oxford Handbook of Cognitive Psychology, (July), 1–16.

Autor Laiss Bertola

Laiss Bertola

@laissbertola

Laiss Bertola é neuropsicóloga clinica, supervisora e professora. Doutora pela UFMG e pesquisadora da relação entre o cérebro e a cognição/comportamento. É apaixonada pelo cérebro e pela neuropsicologia, e busca através de suas ações profissionais melhorar a atuação do profissional interessado nessa área através do eixo fundamental teoria-prática.

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