Jung: um discípulo de Freud?

Carl Gustav Jung foi um dos grandes pensadores da história da humanidade, e com uma das maiores quantidades de produção escrita especificamente para o estudo da psique humana. Criou a chamada Psicologia Analítica, uma ciência de base empírica, registrada em suas obras completas, compostas por 18 volumes.

No primeiro vídeo para o canal Jung Hoje (que você assiste clicando aqui) falei de maneira resumida da cronologia de Jung, desde sua infância até seus últimos dias de vida. No vídeo é possível entender um pouco do ímpeto produtivo de Jung, assim como as convicções que o acompanharam desde sua primeira crise pessoal, aos 12 anos de idade.

Por ter se relacionado de maneira muito próxima a Freud entre os anos de 1907 e 1912, chegando até a presidência da Associação Internacional de Psicanálise, Jung é recorrentemente chamado de “discípulo dissidente de Freud”, contudo, atribuir a palavra “discípulo” me parece um erro conceitual.

Jung foi, sem dúvida, um colaborador de Freud.

O acompanhou em sua viagem aos Estados Unidos em 1909 e aceitou o desafio de defender o novo pilar de conhecimento advindo da medicina de Freud, a Psicanálise. Contudo, Jung já possuía ideias e pesquisas próprias, que antecedem seu relacionamento com Freud.

Em seus primeiros anos de amizade, Jung possivelmente assumiu uma postura de aprendiz perante Freud, haja visto que este era mais velho e já tinha feito publicações expressivas, como “A interpretação de sonhos”, livro que levou Jung a querer conhecê-lo pessoalmente.

Freud, por sua vez, considerava Jung um prodígio, e com capacidade intelectual incrível. Chegou a afirmar que Jung era seu “príncipe herdeiro”. Talvez essas afirmações isoladas, tenham caído numa lacuna histórica, o que levou a crer que Jung era seu discípulo em vez de colaborador.

A questão não é defender quem é melhor ou pior do ponto de vista teórico, ou se há algum mérito ou demérito entre ser colaborador ou discípulo. Estamos falando de dois grandes gênios, que sob suas óticas, marcaram para sempre a forma de se enxergar a Psicologia. Mas é importante entender qual foi a real contribuição deles para nossa ciência, e aqui me dedico a falar de Jung, não de Freud.

Para evidenciar que Jung já rascunhava um caminho próprio, cito algumas de suas pesquisas que aconteceram antes dele ter contato com a Psicanálise de Freud.

Existia uma teoria junguiana antes de Freud


Antes mesmo de iniciar a faculdade, Jung já tinha interesse pelo ocultismo e pelo primitivo. Ele gostaria de ter estudado Arqueologia, mas não o fez por influência de um tio. Desde cedo ele tinha desejo de entender padrões coletivos arcaicos. Posteriormente, nasceria a teoria do Inconsciente Coletivo e dos Arquétipos. Até aqui, estamos no final do século 19.

Em 1900, assim que se forma em medicina, Jung ingressa como médico assistente no hospital de Burgholzi, que tinha a ala psiquiátrica liderada por Eugen Bleuler, considerado um dos maiores psiquiatras de sua época.

Em 1902, Jung finaliza sua tese de doutorado, com o título de “Psicologia e patologia dos fenômenos ditos ocultos”. Seu interesse era entender a relação entre os fenômenos mediúnicos e as alterações de personalidade. Para isso, fez um estudo de caso de uma jovem que era médium espírita.

Paralelamente à sua tese, entre 1902 e 1905, Jung se dedica exaustivamente ao estudo das Associações de Palavras. Esse deu origem ao que conhecemos hoje como “Máquina de detecção de mentiras”.

O experimento consistia no seguinte: Jung listava uma série de palavras aleatórias, e assim que ele as falasse, pedia para que a pessoa dissesse o que viesse imediatamente à mente. A cada palavra, ele anotava tempo de reação da pessoa, assim como observava suas expressões corporais.

Jung percebeu que em algumas palavras, a pessoa hesitava ao responder, as vezes até emudecia. Esse experimento foi peça chave para o que ele chamaria de teoria dos complexos, sua primeira contribuição efetiva para a Psicologia.

É importante ressaltar que “complexos” para Jung, é uma concepção bastante elaborada e que amplia muito a noção de Complexo de Édipo trazido por Freud. Esse é um dos conceitos que Jung constrói antes de entrar em contato com Freud, e que permeia toda sua teoria.

Aqui estou focando apenas nos fatos históricos entre Jung e Freud, sem aprofundar as questões conceituais. No decorrer de 2017 teremos outros conteúdos aqui na Academia para apresentar e debater a teoria dos complexos. Ela é vital para compreender toda a construção da obra Junguiana e a prática da psicoterapia analítica.

Os estudos sobre as Associações de Palavras foram publicados em 1906, hoje registrados no livro chamado “Estudos Experimentais”.

No ano de 1907, tendo como base sua experiência no hospital de Burgholzi, Jung publica outro livro bastante importante, que trata da esquizofrenia, hoje com o título de “Psicogênese das doenças mentais”.

Nele, Jung apresenta um ensaio sobre a forma de se entender a esquizofrenia como uma doença de caráter psíquico e não somente orgânico. Na época, sem qualquer acesso às ferramentas e exames precisos que a medicina possui hoje, Jung fala na possibilidade de se ter uma “toxina” que poderia levar a psicopatologias.

Em seus estudos, propõe um olhar para os complexos atuantes na esquizofrenia, independentemente de sua origem. Por meio de sua psicoterapia, ainda em caráter experimental, conseguiu amenizar e até acabar com os sintomas de alguns de seus pacientes.

Hoje sabemos que há um mapeamento mais claro da esquizofrenia, podendo inclusive estar associada à hereditariedade, e que seu tratamento efetivo, envolve, dentre outras ações, a psicoterapia. Esta foi outra contribuição de Jung à Psicologia, sem uma influência direta das teorias de Freud.

O sucesso de Jung no tratamento de esquizofrênicos é um ponto que ilustra um dos aspectos preconizados pela Psicologia Analítica: um olhar ao homem integral, que é histórico, biológico, social, espiritual e psíquico. Para ele, não há separação mente-corpo. A psique não é o mesmo que cérebro ou sistema nervoso. Se trata de um espaço potencial e fenomenológico.

É com esse repertório, formação intelectual e experiências, que Jung chega até Freud no ano de 1907, ou seja, as bases de suas teorias já possuíam pilares bastante sólidos.

Em 1909, foram juntos aos Estados Unidos, onde Freud apresentou as célebres “Cinco conferências sobre psicanálise” e Jung apresentou seus estudos sobre a associação de palavras.

A Associação Internacional de Psicanálise foi fundada em 1910 e presidida por Jung, escolhido por influência política de Freud.

Quando os caminhos se afastam


Diferentemente de Freud, que pregava a originalidade da Psicanálise, como uma ciência construída fundamentalmente pelas suas ideias e experimentos, Jung bebia muito na fonte da filosofia, considerando até pensadores do século II (como Tertuliano e Orígenes, amplamente analisados no livro “Tipos Psicológicos”) para aprofundar e fundamentar suas ideias.

O incômodo de Jung pelo modelo de libido apresentado por Freud, que se tratava fundamentalmente de energia sexual, foi crescendo. Em 1912 a colaboração entre os dois se encerrou, com a publicação do livro “Metamorfose e símbolos da libido”, atualmente nomeado “Símbolos da transformação”.

Nesta obra, Jung começa a apresentar seu sistema psíquico, no qual há uma energia, ou libido, que pode ser direcionada para qualquer aspecto da psique, que não necessariamente o sexual. Isso daria subsídio para seu conceito dos Tipos Psicológicos, Inconsciente Coletivo e outros.

Jung ficaria até 1914 na presidência da Associação Internacional da Psicanálise, mas desde 1912 sua relação com Freud estava terminada.

Arrisco a dizer que Freud gostou de Jung justamente pela sua postura crítica e assertiva, um médico que já trazia em seu repertório muitas contribuições diferentes das propostas pela Psicanálise.

Vale destacar que Jung nunca deixou de citar Freud em sua obra, seja em tom de crítica teórica, ou até mesmo de validação dos pressupostos psicanalíticos. Para Jung, a discordância era teórica. Para Freud, foi uma decepção pessoal.

Nos registros históricos, não há qualquer menção direta de que Jung considerava Freud seu mestre, se colocando numa condição de discípulo, embora Freud tenha sido uma das suas inspirações para continuar nos estudos da psique e do inconsciente.

Para entender um pouco da relação entre os dois, tem um bom filme chamado “Um Método Perigoso”, estrelado pelos atores Viggo Mortensen e Michael Fassbender.

Discordâncias teóricas podem ser fontes de crescimento e renovação. Foi a partir de seus contrapontos com Freud, que Jung construiu uma obra atemporal, de natureza única.

Dois grandes nomes, que seguramente estão entre os mais importantes da história da humanidade.

Referências:                               

Livro: Jung: Vida & Obra – Nise da Silveira

Livro: Símbolos da transformação – Carl Gustav Jung

Filme: Um Método Perigoso, de David Cronenberg. Com Viggo Mortensen e Michael Fassbender.

Autor Rafael Rodrigues

Rafael Rodrigues

@rafaelrodrigues

Psicólogo, pós-graduado em Administração e Psicologia Junguiana, além de Analista Junguiano em formação. Psicólogo clínico e palestrante. Como uma transmutação alquímica, fez de sua experiência corporativa, combustível para a criação da Solução Ativa e mergulho no estudo da obra de C.G. Jung. O canal Jung Hoje vai trazer conceitos e práticas desse modelo teórico, cada vez mais em destaque no Brasil.

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